Uma espessa aura de mistério sempre envolveu a intimidade de João Gilberto. Ermitão convicto, o criador da bossa nova deu linha a um novelo infindável de histórias curiosas e passagens pitorescas em torno da sua vida pessoal e profissional. Passava dias inteiros dedilhando uma mesma música em busca da perfeição, não concedia entrevista, não saía de casa e só permitia que pouquíssimas pessoas entrassem em seu mundo peculiar. No rol de privilegiados que conviveram com o genial — e genioso — artista, mesmo que por um curto período, inclui-se o advogado Gustavo Carvalho Miranda, de 39 anos, que teve essa chance ao ser contratado para defender os interesses de João Marcelo, primogênito do cantor baiano, nos imbróglios que puseram a família em pé de guerra no fim de sua vida. Miranda contou a VEJA que João Gilberto simpatizou com ele, o recebeu em frequentes visitas no célebre apartamento no Leblon e, quatro dias antes de morrer, aos 88 anos, em 6 de julho de 2019, lhe deu de presente uma pasta preta apinhada de documentos e papéis pessoais que abrem uma valiosa janela para o inviolável cotidiano do músico. “Guardei a pasta no meu escritório e só em janeiro passado fui olhar o material detalhadamente. Quase caí para trás com a preciosidade que tinha nas mãos”, diz o advogado.
Na pasta, organizadíssima — o que faz crer que não tenha sido arrumada por João Gilberto, conhecido pela cabeça de vento para questões corriqueiras —, estão registros que cobrem duas décadas, de 1978 a 1998. Um deles é o original de um fax de trabalho acrescido de mensagem pessoal que ele enviou a George Wein, famoso produtor de jazz que promoveu uma turnê sua pelos Estados Unidos e Itália em 1998, quando foram comemorados os quarenta anos da bossa nova. Dobrado diversas vezes, outro papel é uma “cola” usada no palco com a sequência das músicas a serem interpretadas, duas delas — S’Wonderful e Este Seu Olhar — anotadas de próprio punho. “Ele não gostava de escrever e um documento com sua caligrafia é uma raridade. Só o vi dar autógrafo uma vez na vida”, conta o empresário Krikor Tcherkesian, que trabalhou com o músico por vinte anos. No baú de memórias herdado pelo advogado Miranda encontra-se ainda uma descrição de seus cachês. Assinado por John Phillips, presidente do JVC Jazz Festival, o papel atesta que, em 1998, ele recebeu 110 000 dólares por quatro shows em cidades italianas, bem como o adiantamento (45 000 dólares) por uma apresentação no Carnegie Hall, em Nova York — templo da música que o catapultou para a fama, em 1962. “Pela escassez de vestígios deixados por João, qualquer objeto que pertenceu a ele tem um valor histórico enorme”, avalia o produtor musical Nelson Motta.
Embora no decorrer da vida tenha ficado cada vez mais ensimesmado, o gênio recluso cultivava um punhado de amigos — a maioria a distância — no Brasil e mundo afora. No meio da papelada inédita contida na pasta, Miranda achou uma carta escrita por Jorge Amado, com rodapé redigido pela mulher dele, Zélia Gattai. Nela, o escritor lamenta um desencontro havido em Nova York — João Gilberto, sendo João Gilberto, se atrasou —, diz que vai incluir um texto sobre ele em uma edição de Bahia de Todos os Santos e demonstra afeição por “meu filho Joãozinho”. Zélia ratifica: “Temos dois filhos João (um deles, o próprio filho) que nos dão sempre muita alegria”. Um segundo achado traz à tona mais um elo famoso, este menos provável: o certificado de autenticidade de uma luva de boxe — a peça era guardada em uma caixa pelo músico — de Muhammad Ali, o maior de todos. A fixação por lutas na TV, aliás, era uma de suas excentricidades. Outra mania, a de se pendurar durante horas ao telefone, seu meio preferencial de comunicação, fica evidente em uma conta de hotel, em Milão, de 1998. Uma única ligação custou 2 250 000 liras, o equivalente a 7 700 reais. Junto à nota estavam crachás de backstage, faxes citando pendengas no imóvel alugado do Leblon — enfrentou três ações de despejo — e recibos de compras no exterior. Nesse bolo há gastos da moçambicana Maria do Céu Harris, com quem conviveu entre idas e vindas por mais de trinta anos, como a aquisição de uma bolsa Louis Vuitton, em 1996, em Roma, pelo equivalente a 15 000 reais em valores de hoje. “Quando ele ganhava muito, gastava muito. Não havia limite”, lembra outro antigo amigo, o diretor musical Aquiles Franzotti.
As relíquias do gênio maior da bossa nova chegaram às mãos de Miranda, que já não advoga para João Marcelo, em 2 de julho de 2019, segundo relato dele próprio. Àquela altura, o filho do músico, que vive nos Estados Unidos, e a irmã (apenas por parte de pai) Bebel Gilberto viviam às turras por ele discordar da interdição do artista, providenciada por ela, e se sentir alijado das decisões. A cantora, que também morou muito tempo fora do país e hoje está radicada no Rio, conseguiu a curatela provisória do pai em 2018, após uma visita em que o encontrou, segundo seu relato, em situação de penúria, magérrimo, vivendo em um ambiente degradante. Com a missão de acompanhar o processo de perto, Miranda se aproximou de João Gilberto em seus últimos quatro meses de vida. Na data em que conta ter sido presenteado com a pasta, havia acompanhado o artista em uma perícia neurológica. “Ele estava lúcido, mas tinha lapsos, como qualquer pessoa de idade. Na frente de desconhecidos, ficava travado”, afirma.
Naquele dia, o levou para comer frutos do mar e tomar vinho português — seu preferido — em um restaurante carioca à beira-mar. Em suas visitas à casa do pai da bossa nova, lembra que ele falava da saudade da primeira mulher, Astrud, e da vontade de voltar a “viver na América”. Sentado numa poltrona vermelha, cantarolava clássicos como Bim Bom e Samba de Uma Nota Só. “Tenho a impressão que ele me deu os papéis como agradecimento por termos ficado próximos”, diz Miranda. “Penso, no futuro, em talvez doar a uma instituição. Mas não para a família dele, onde ninguém se entende”, acrescenta.
Desde a morte de João Gilberto, os herdeiros travam uma acirrada disputa na Justiça. O próximo round acontecerá em algumas semanas, quando Maria do Céu, que o conheceu em Lisboa durante um show em 1984 e passou a maior parte da vida sendo sustentada pelo músico, entrará com uma ação pedindo que seja invalidada a revogação de um testamento dele de 2003 no qual, além de Bebel e João Marcelo, ela era beneficiária de 30% do patrimônio. Catorze anos depois, acompanhado de Claudia Faissol — com quem teve uma filha, Luisa, de 16 anos —, João Gilberto desfez a divisão de bens. O argumento usado por Maria do Céu é de que isso aconteceu em um momento em que o artista já vacilava na lucidez. No fim de 2019, cinco meses após a morte dele, Céu, que ainda ocupa o apartamento de João Gilberto (ela pode ser despejada a qualquer momento por aluguéis atrasados, de cerca de 200 000 reais), também ingressou na Justiça pedindo o reconhecimento da união estável. Procurado, seu advogado, Roberto Algranti Filho, não quis falar.
Algranti solicitou recentemente à Justiça que os nove violões do cantor, de posse de Maria do Céu, fossem cedidos em comodato a uma instituição cultural, o que foi negado. No enrosco patrimonial estão em jogo diversos objetos, mas a pendenga maior gira em torno de direitos autorais. “Depois de muitas desavenças, os advogados dos três filhos estão trabalhando juntos em prol de um só interesse: a obra do João”, afirma Deborah Sztajnberg, que defende agora o primogênito. A família terá ainda que aparar arestas com o banco Opportunity, dono de 50% de uma indenização multimilionária devida aos herdeiros pela gravadora EMI. Enquanto a disputa pelo que é de quem se desenrola, a pasta preta agora aberta dá sua contribuição para preservar a memória do mestre da bossa nova.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731