Até hoje, a pintura A Traição das Imagens (La Trahison des Images, em francês), do artista belga René Magritte, confunde muita gente. O quadro, pintado em 1929 e hoje exposto no Museu de Arte de Los Angeles, nos Estados Unidos, faz parte de uma série na qual a imagem realista é acompanhada da inscrição “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo, em português). Trata-se de uma obra-prima surrealista. Ao causar estranheza, estimula o espectador a entender o que está acontecendo ali. O quadro transcende a compreensão racional, relacionando-se diretamente com o imaginário e o absurdo.
Guardadas as mais que devidas proporções, foi um pouco desse desafio entre o lógico e o surreal que tomou conta dos espectadores da última edição da Semana de Moda de Paris — a primeira presencial desde o início da pandemia — realizada entre setembro e outubro. Fashionistas são pessoas habituadas a ver coisas inusitadas, mas é fato que a temporada primavera/verão 2022 virá mais incrementada nesse quesito, em especial pela criação de acessórios surpreendentes e, por que não dizer, surreais. Ou, nas palavras dos designers, experimentais. “Fazer um show agora é como assumir uma forma estranha de um ato surrealista. É quase um ato neurótico, porque tudo é normal, mas ao mesmo tempo não é”, disse Jonathan Anderson, estilista da Loewe, marca que mais chamou atenção nas apresentações.
E logo ela, a grife preferida da realeza espanhola desde 1905, quando o rei Alfonso XIII nomeou o fundador Heinrich Loewe Rössberg como o designer oficial da casa real em reconhecimento ao seus clássicos sapatos de salto alto. Agora, os modelos vêm repletos de um evidente desejo de liberdade e espontaneidade criativa. “Não queria algo totalmente baseado na realidade”, explicou Anderson. O resultado foi uma sucessão de sandálias com saltos divertidos e bem esquisitos: em formato de sabonete, vela de aniversário, vidro de esmalte, rosa vermelha pisada e até ovo quebrado — um claro desafio às noções de normalidade. O salto alto é o maior sinônimo da autoestima feminina. Na passarela da Loewe, era como se as mulheres, não à toa intituladas “neuróticas, psicodélicas e completamente histéricas”, estivessem reaproveitando os objetos com os quais passaram meses e meses em casa para finalmente sair da escuridão da pandemia em direção à diversão.
Intervenções do gênero também apareceram em outros fashions shows seguindo o mesmo intuito de criar formas de escapismo para o período difícil que o mundo enfrenta. Batman, personagem criado pela DC Comics em 1939, ressurgiu em versão vintage e estilizada estampando sneakers e bolsas na passarela da Lanvin. Sapatos usados em casa ganharam suas versões exóticas nos desfiles. Loewe e Fendi, por exemplo, apostaram nos acessórios de pelúcia. Já Simone Rocha, Versace, Anna Sui, Miu Miu e Vivienne Westwood mergulharam no lúdico e trouxeram de plataformas pesadas a sandálias delicadas com meias, inclusive estampadas de motivos infantis. Do deslumbre das passarelas à realidade das ruas, no entanto, há uma distância imensa. Por isso, é de indagar se modelos à la Magritte serão vistos nos shoppings, restaurantes, cinemas. A designer de sapatos de luxo Adriana Farina acha que sim. Principalmente os divertidos criados pela Loewe. “Os saltos esculpidos são grande tendência. Dentro de um conceito do que é usável, a moda pega”, diz. Adriana lembra que os brasileiros gostam de roupas e acessórios inusitados e exclusivos, mesmo que sejam um pouco estranhos. “Especialmente entre os mais jovens, que também os usam em seus vídeos na internet.” É verdade. Se fica bem na passarela, vai fazer sucesso nas redes sociais. Ainda mais quando se fala de bolsas e sapatos, ótimos recursos para causar sensação. Como disse Marilyn Monroe: “Dê a uma mulher os sapatos certos e ela poderá conquistar o mundo”.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762