Em um dia preguiçoso de verão, as crianças brincam na grama e os cachorros-quentes estão quase prontos. Ninguém vai comê-los: esse é o dia que Thanos (Josh Brolin), vilão de fortes opiniões demográficas, escolheu para dizimar metade de toda a população do universo — e é o dia, portanto, em que Gavião Arqueiro (Jeremy Renner) perde toda a sua família, desfeita em pó sem que ele entenda o que está se passando. Gavião e os outros super-heróis que escaparam do pangenocídio de Thanos terão agora de enfrentar a doença que infectou o século XX e chegou até eles com virulência imprevista — a culpa dos sobreviventes. Cada um manifesta os sintomas de forma diversa. Inconformado com a morte dos bons, Gavião vira um justiceiro obcecado por eliminar também os maus. Capitão América (Chris Evans) pondera que salvar uma pessoa é um gesto simbólico que equivale a salvar a humanidade, e dedica-se aos grupos de apoio. Viúva Negra (Scarlett Johansson) persegue pistas de — qualquer coisa, num combate à sensação de futilidade compartilhado também por Nebula (Karen Gillan), Rocket (Bradley Cooper) e a Capitã Marvel (Brie Larson). Em depressão, Thor (Chris Hemsworth) mergulha na cerveja e cria barriga, enquanto Hulk (Mark Ruffalo), contraditoriamente, encontra alguma paz em abraçar seu lado monstruoso. O Homem de Ferro (Robert Downey Jr.) conta suas bênçãos: vida, mulher e agora também uma filha. Por isso é o que mais hesita quando o Homem-Formiga (Paul Rudd) por fim escapa de seu exílio no universo quântico e traz uma ideia para reverter as ações de Thanos; é um dos poucos para quem o presente não é só uma sombra do passado.
É drama, não ação nem aventura, e até o humor tão característico da Marvel vem aqui com um toque melancólico. Começar assim e prosseguir nesse ritmo durante bem mais de uma hora (de um total de três) naquela que as projeções anunciam como a segunda ou até a primeira bilheteria mundial da história é uma decisão audaciosa dos irmãos Joe e Anthony Russo, os diretores de Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país. Mas a decisão se apoia sobre uma fundação robusta: os vinte filmes nos quais, no decorrer de onze anos, a Marvel meticulosamente construiu um mundo tão intrincado, e tão aliciante, que para parte do público ele se tornou uma realidade paralela (e há quem viva mais lá do que cá). Filmes de super-heróis atraem todo tipo de acusação — superficialidade, regressão, infantilização, escapismo. Ainda que o assunto mereça discussão, e merece, a esta altura é necessário encarar o fenômeno da mesma maneira que se consideram os edifícios que definem a silhueta de uma cidade, ou as pontes que inventam uma paisagem onde antes só havia um trecho de terreno: esta é a arquitetura da cultura pop, e o “Marvelverso” é hoje a sua estrutura mais proeminente.
Trata-se de uma façanha de cálculo executada por uma equipe altamente diversa de engenheiros e supervisionada por um projetista arrojado. Kevin Feige, o mandachuva dos Estúdios Marvel, desenhou plantas que abarcam desde o marco zero do Marvelverso (o lançamento do primeiro Homem de Ferro, em 2008) até a década vindoura, e se mostrou intransigente na defesa dos seus planos. Os quais, curiosamente, incluem espaços generosos para que o imponderável possa circular: Feige recrutou mais diretores novatos do que experientes, e foi buscá-los em locais pouco usuais — no terror, na comédia e no drama independente. Então, cuidou para que esses profissionais pudessem exercer suas aptidões com o máximo de latitude até (ou principalmente) quando a Marvel foi comprada pela Disney, em 2010. Graças ao trabalho de curadoria de Feige, a Marvel preservou algo essencial mesmo ao se incluir na maior engrenagem corporativa do entretenimento: a cultura agitada, irrequieta, irreverente e algo anárquica do meio dos quadrinhos. Em suma, cultivou a variedade ao mesmo tempo em que preservou a identidade.
Se isso parece abstrato, pense-se que só agora a DC Comics começa a encontrar um equilíbrio semelhante, ou avalie-se quão despersonalizado ficou Han Solo — Uma História Star Wars, que a Lucasfilm produziu também dentro da Disney. Um dos personagens mais deliciosos do cinema rendeu um filme com cara de produto, e não de criação — ao passo que a Marvel conseguiu fazer não um, mas dois filmes irresistíveis com um personagem tão menosprezado como era o Homem-Formiga. A comunhão com o público (e a capacidade de ampliá-lo para muito além dos fãs de quadrinhos) é o que sustenta o cacife da Marvel; e homenagear tudo aquilo que esse público investiu nela, na forma de ingresso e de emoção, é o propósito maior de Vingadores: Ultimato, já que nele se encerra esse primeiro grande ciclo do estúdio.
Do ponto de vista estritamente cinematográfico, assim, seria possível apontar várias falhas em Ultimato. Por exemplo, a demora a engrenar, a dispersão entre tantos personagens, o sentimentalismo de tantas cenas, os recursos previsíveis para desfazer a catástrofe do desfecho de Vingadores: Guerra Infinita. Mas, do ponto de vista da plateia que acompanhou esses personagens até aqui, todos esses sinais ficam invertidos: o que se proporciona a ela é a oportunidade de se despedir dos heróis que não vão retornar e dos atores que vão entregar seus papéis a novos intérpretes — além de tempo para aclimatar-se a ideias como finitude e mudança. Cineastas habitualmente musculosos e de estilo enxuto, que concentraram a força de Capitão América: O Soldado Invernal e Capitão América: Guerra Civil no confronto físico e dramático direto, os irmãos Russo aqui continuam na veia mais grandiosa e grandiloquente de Guerra Infinita, porque Ultimato não faz sentido para nenhum outro tipo de espectador que não esse, o seguidor que tem algum grau de compromisso emocional com o Marvelverso. O que Feige e os Russo oferecem, então, é catarse e desfecho, conforme cada caso. E, mais do que tudo, renovam seu pacto com o público: ao demonstrarem que compreendem o que ele deseja de Ultimato, afirmam que a próxima estrutura a ser erguida vai ser tão intrincada, e tão aliciante, quanto esta. Para quem é estranho a esse mundo, isso nada significa. Mas, para a geração que vê nele uma extensão do seu próprio, nenhuma promessa poderia ser mais necessária.
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632
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