Durante show em Nova York, em março de 2018, Demi Lovato fez um desabafo: diante da plateia de 20 000 fãs, celebrou seis anos de sobriedade. Após entoar uma de suas várias baladas de superação, a cantora, então aos 25 anos, relembrou o passado: “Eu estava bebendo vodca em uma garrafa de refrigerante às 9 da manhã, e vomitando no carro quando notei que aquilo não era mais divertido”. A comemoração durou pouco. Um mês depois, Demi sofreu uma recaída: voltou a beber e experimentou drogas mais pesadas, como a heroína. No dia 24 de julho, sofreu uma overdose. Encontrada desacordada em seu quarto, Demi foi atendida por uma equipe de resgate e levada ao hospital. Sofreu três AVCs, uma parada cardíaca e falência de órgãos. Apesar dos prognósticos sombrios, ela sobreviveu.
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O drama é contado em detalhes, pela primeira vez, na série documental Demi Lovato: Dancing with the Devil (dançando com o diabo, em português), que chega ao YouTube na terça 23. Nos quatro episódios, familiares, amigos, médicos, empresários e a própria Demi relatam bastidores dos acontecimentos, antes e depois da overdose. “Já vivi nove vidas”, diz a cantora, hoje aos 28 e lidando com sequelas do episódio — como problemas na visão. O filme traz revelações estarrecedoras. Exemplo: ela teria sido abusada pelo traficante que lhe vendeu drogas na noite em que quase morreu, quando inconsciente.
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A minissérie atesta a rara honestidade de Demi em meio à purpurina do mundinho pop. Em um passado não muito distante, cantoras do gênero, amparadas por suas canções edulcoradas e aparência impecável, corriam para esconder suas falhas. Demi quebrou a imagem de falsa perfeição aos 18, quando, ainda na pele de estrela juvenil da Disney, foi internada em uma clínica de reabilitação. Na época, a desculpa divulgada foi que receberia um tratamento psicológico para “se responsabilizar por seus atos” após brigar com uma dançarina. A fachada logo caiu e a sacada foi transformar a tragédia pessoal em fonte de inspiração. Em vez de esconder suas agruras, ela expôs que sofria de um distúrbio alimentar e, desde os 17, era viciada em álcool, cocaína e ansiolíticos. As experiências foram vertidas em hits no disco Unbroken (2011). Desde então, a música virou sua válvula de escape, com letras francas e repletas de “spoilers” — um mês antes da overdose, enquanto mantinha a recaída em segredo, ela lançou Sober (sóbria, em português), um grito de socorro em que afirmava ter voltado a beber. “Quero ser um bom exemplo, mas sou só humana”, diz a letra. Demi foi então transformada em símbolo de força e superação — armadilha que a levou de volta ao vício. Traumas mal resolvidos também têm sua parcela de culpa — como um caso de abuso sexual que teria sofrido nos anos de trabalho na Disney. Sem abrir o nome do homem envolvido, ela diz que perdeu a virgindade naquilo que mais tarde percebeu ser um estupro. Na época, usava um anel de castidade, comum aos atores da Disney, para se guardar até o casamento — e não falou nada por se sentir culpada.
Com ascendência mexicana, Demi cresceu em Dallas, no Texas. Violento, seu pai se tornou uma figura ausente após o divórcio e morreu em 2013. A mãe, uma cantora country, lidava com distúrbios alimentares. A estreia de Demi nos palcos se deu em concursos infantis de beleza, experiência que a fez desenvolver bulimia. “Se eu perder, não vou comer nunca mais”, pensou ela antes de uma competição. Aos 9, chegou à TV, no programa Barney e Seus Amigos. Logo a Disney fez dela uma estrela mundial com o filme Camp Rock (2008), ao lado da boy band Jonas Brothers. A pressão pelo corpo perfeito e os excessos da fama foram golpes duros para a saúde mental de Demi, que hoje diz ter achado um equilíbrio emocional e alimentar. Na esteira de Dancing with the Devil, ela vai lançar em abril seu novo disco. Apesar da volta por cima, Demi assume não estar totalmente sóbria. Ela adotou um tratamento à base de medicação e do uso “moderado” de maconha e álcool. “Não é algo que funciona para todos”, alerta. Ninguém se torna uma bem-sucedida diva imperfeita por acaso.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730
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