Em um único dia, 24 de julho, o Brasil perdeu duas de suas mais influentes cantoras — a um só tempo mães e filhas da bossa nova. Doris Monteiro e Leny Andrade — que nos anos 1950 e 1960 quebraram a trilha dos vozeirões com impostação e vibratos muitas vezes desnecessários — abriram caminho para nomes como Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa e Rita Lee.
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Parece improvável, mas houve um tempo em que o Brasil e o mundo ainda não tinham acompanhado a batida de violão sincopada e a voz miúda de João Gilberto. Antes dele, em 1957, Doris Monteiro estourou nas rádios com um agradável samba-canção, Mocinho Bonito, composição de Billy Blanco, a mais tocada daquele ano, cuja letra encaminhava as aventuras de um “falso malandro” de Copacabana: “Mocinho bonito / Perfeito improviso / Do falso grã-fino / No corpo é atleta / Mas no crânio é menino / Que além do ABC / nada mais aprendeu”. Era a abertura de uma porta — no estilo, no ritmo e no timbre — para a avenida pela qual passariam João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Era o prólogo da bossa nova. Um pouco antes, aliás, em 1951, com apenas 17 anos, ela gravaria um disco de 78 rotações com Se Você Se Importasse, de Peterpan, de um lado, e Fecho Meus Olhos… Vejo Você, de José Maria de Abreu, do outro — indício do nascimento de algo muito novo. Não por acaso, um leque extraordinário de compositores pegou atalho nas criações de Doris, que os apresentava com delicadeza e perfeição: Tom Jobim e Dolores Duran (Se É Por Falta de Adeus), Silvio César (O Que Eu Gosto de Você), Sidney Miller (Alô Fevereiro), e tantos outros. Ela tinha 88 anos.
Quando começou a carreira de crooner de orquestra, em 1958, aos 15 anos, Leny Andrade tinha uma inspiração evidente: Doris Monteiro. Não demorou para ser convidada a participar das noitadas de música do mítico Beco das Garrafas, o berço da bossa nova — a travessa sem saída da Rua Duvivier, em Copacabana, no Rio de Janeiro, entre os edifícios de números 21 e 37, que abrigava uma série de casas noturnas nas décadas de 1950 e 1960. Com o LP A Sensação, de 1961 — e ao longo de 34 álbuns —, ela trilhou carreira sem fronteiras, de alcance internacional, mestre no improviso vocal — o scat singing, no vocabulário do jazz. Em 2008, depois de um show em Nova York, um dos críticos do The New York Times, espantado com a mistura, embebida de samba, jazz e boleros, a definiu como “um misto de Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald da bossa nova”. Vivia reclusa no Recanto dos Artistas. Leny tinha 80 anos.
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Em 2017, em um espetáculo dedicado ao centenário de nascimento de Dalva de Oliveira (1917-1972), Doris Monteiro e Leny Andrade subiram juntas ao palco para interpretar clássicos do cancioneiro da “Rouxinol do Brasil”. Doris interpretou Zum zum, de Fernando Lobo (“Oi Zum zum zum / Zum, zum, zum / Está faltando um!”) e Leny foi de Há um Deus (“A minha dor é enorme / Mas eu sei que não dorme / Que vela por nós / Há um Deus / E este Deus lá do céu / Há de ouvir minha voz”). As duas ajudaram a construir uma ideia de nação que tem um ouvido musical que não é normal.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852