Quando chegou ao Brasil, em 2014, o sírio Kaysar Dadour fez de tudo um pouco para ganhar um trocado. O refugiado, que deixou a cidade de Alepo quando rompia a guerra da Síria, em 2011, trabalhou como garçom e até adestrador de aves em Curitiba, no Paraná, onde vive ainda hoje. Mas o bico que melhor representava seu sorriso farto foi de animador de festa infantil — função que o fez vestir bregas figurinos coloridos, de príncipe encantado a um super-herói como o Capitão América. “Eu gostava quando podia comer à vontade, especialmente doce. Era uma loucura”, disse a VEJA com seu sotaque carregado e sua naturalidade meio ingênua. Desde então, Kaysar juntava dinheiro em busca de dois sonhos: tirar a família da Síria e trazê-la para o Brasil e, com alguma sorte, se tornar ator. A inusitada janela do destino veio em 2018, com o Big Brother Brasil. A característica simpatia que fazia sucesso com crianças em aniversários conquistou não só o público que assistiu ao reality como também a própria Globo.
Hoje aos 30 anos, o sírio fugitivo de guerra cavou a sua trincheira na emissora. Aos domingos, desliza com gingado tropicaliente no quadro Dança dos Famosos, no Domingão do Faustão. No início do ano, fez sua estreia nas novelas, em Órfãos da Terra. A carreira de ator decolou, e Kaysar acaba de chegar aos cinemas com Carcereiros: o Filme (Brasil/2019. Já em cartaz), produção derivada da série de TV homônima, protagonizada por Rodrigo Lombardi. Na trama, o ex-BBB encarna o terrorista árabe Abdel Mussa, personagem deixado sob a supervisão do agente penitenciário interpretado por Lombardi, durante um traslado temporário ao país. Toda a ação é concentrada na noite que Mussa passa no presídio: não bastassem os presos que abominam o terrorista, uma invasão com homens encapuzados transforma o longa num bangue-bangue claustrofóbico em meio aos corredores do cárcere.
Esse é não só o segundo papel de Kaysar, mas também o segundo vilão. Em Órfãos da Terra, ele deu vida a Fauze, capanga do xeique malvadão Aziz (Herson Capri). “Não sei se tenho cara de mau, mas gosto de vilões”, diz. Sincero, ele está a par do estereótipo em que se meteu. “O árabe tem fama de terrorista, porém não pensei duas vezes ao aceitar o papel. Quero aprender, quero ser ator.” Para continuar representando — desejo que vem desde a juventude, quando devorava novelas sírias e filmes hollywoodianos —, Kaysar tem se dedicado a aulas de atuação e de português, bem como a sessões de fonoaudiologia para lapidar o sotaque. Para encarnar tantos homens ruins, a grande aula veio, infelizmente, da vida. “Lidei com muita gente má. Lembro como falaram comigo, como me trataram, e utilizo isso nos personagens.”
Kaysar não gosta muito de comentar o passado: diz não estar pronto. Sabe-se que ele vem de uma família de classe média alta. Eles viviam de modo confortável antes da guerra civil da Síria, que matou meio milhão de pessoas. Seu pai, Georges Dadour, representava uma marca de cosméticos, e a mãe, Diane, era dona de casa. Antes de vir para o Brasil, Kaysar foi para a Ucrânia, onde dormiu na rua até conseguir um emprego de gari. Uma noite, acabou sendo atacado por uma gangue nacionalista por ser sírio e cristão. Teve a perna direita e o braço esquerdo quebrados. Foi quando decidiu entrar em contato com um primo de sua mãe, Abdo Abage, cônsul honorário da Síria no Brasil. Abdo e o irmão Nassib receberam Kaysar e o ajudaram a se estabelecer em Curitiba. Quando participou do BBB 18, seu mote era vencer o programa para, com o prêmio de 1,5 milhão de reais, trazer os pais e a irmã mais nova para viver com ele. Kaysar ficou em segundo lugar, atrás da acriana Gleici Damasceno, ganhando dois carros e 150 000 reais.
A história comoveu o país e motivou promessas de ajuda da Globo. Mas foi por esforço próprio que ele alcançou o objetivo: cinco meses depois do fim do reality, a família desembarcou em São Paulo, cercada por câmeras e fãs no aeroporto. Os quatro vivem na casa montada pelo ator na capital paranaense — sem luxos, mas com a tranquilidade de poder dormir em paz. Kaysar ainda planeja com o pai um pequeno empreendimento para que ele volte ao mercado de trabalho. Agora, finalmente adquiriu a cidadania brasileira. “Foram cinco anos até ter esse documento. Prometo honrá-lo”, diz. Ao falar sobre a Síria, ele se emociona. “Quero visitá-la um dia. Mas nossa vida é aqui. Vocês nos acolheram. Sou brasileiro.” Sim, esse refugiado que rebola sem pudor na TV é coisa nossa.
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663
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