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Como autora espanhola transformou crises de pânico em ótima literatura

Em 'O Perigo de Estar Lúcida', Rosa Montero explora o papel da loucura na literatura, partindo de uma perspectiva também pessoal; confira entrevista

Por Gabriela Caputo Atualizado em 29 dez 2023, 10h25 - Publicado em 29 dez 2023, 10h21
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  • Rosa Montero abre o livro O Perigo de Estar Lúcida (Ed. Todavia), recém-lançado no Brasil, com a confissão de que, desde criança, carrega consigo a consciência de ter algum desajuste dentro da cabeça. Grande nome da literatura espanhola contemporânea, a autora de 72 anos elabora uma rica exploração sobre como a chamada “loucura” está intimamente ligada à atividade criativa. Para isso, evoca casos exemplares de artistas renomados, principalmente da literatura, narrando como as angústias da instabilidade mental influenciaram essas figuras e suas produções. Amparada por livros de psicologia e neurociência, Rosa adiciona ao estudo sua experiência com crises de pânico ao longo da vida, escrevendo, portanto, de uma perspectiva também pessoal. “Somos todos esquisitinhos, embora, é verdade, uns mais do que outros”, resume a autora.

    Assim como em obras anteriores, como os inspirados livros Nós, Mulheres e A Boa Sorte, Rosa se vale do que chama de “artefatos literários” – uma mescla de gêneros para construir suas narrativas, forjando identidade própria. Em entrevista a VEJA, a autora reflete sobre a temática do livro e sobre sua própria escrita, revelando de onde partem suas inspirações e o interesse por personagens inusitadas. Confira:

    A senhora se apresenta no livro como alguém que faz parte da estatística, tendo sofrido ataques de pânico por períodos da vida. Acha que seria possível escrever sobre esse tema se não existisse tal identificação? Uma pessoa escreve a partir de tudo o que ela é. Seus livros são seus sonhos, suas leituras, sua situação social e familiar, seu conhecimento, sua saúde. Tudo, absolutamente tudo o que você é influencia a maneira como vê o mundo e como escreve. Ou seja, teria sido absolutamente impossível para mim escrever este livro, que trata de saúde mental, sem ter tido ataques de pânico – é uma parte essencial de quem sou. 

    Ser ou estar louco permite uma compreensão mais profunda das pessoas e suas dores? Isso facilita a construção de personagens mais complexas? Depende do que você faz com isso. O que chamamos de “loucura” é um sofrimento importante. O sofrimento psicológico, da mente, é terrível. Mas é como qualquer outro. Quero dizer, há pessoas que sofrem, fazem um ninho com a dor e se trancam dentro dele, e que pensam que o mundo lhes deve alguma coisa. Assim não aprendem nada. Outra coisa que pode ser feita é tentar desenvolver empatia e compreender melhor a dificuldade dos outros. E é isso que, de fato, ajuda a observar e construir personagens mais complexos, porque você os entende melhor. Mas essa é uma decisão que você toma: o que vai fazer com a dor que sentiu?

    A condição feminina é uma perspectiva frequente em sua obra. Não acho que a condição feminina seja constante em meu trabalho. É um dos ingredientes do que sou, mas um em 100 mil. No mundo ocidental, não se pode mais diferenciar a obra literária ou a arte de uma pessoa pelo fato de ela ser um homem ou uma mulher, na verdade. Neste momento, acredito que o que tem mais influência sobre a forma de se enxergar o mundo é ter nascido e crescido no campo ou na cidade grande. Sou mulher, claro, e também me considero feminista, mas não há uma visão ou perspectiva especial sobre isso. Me irrita muito quando uma mulher escreve um romance em que a protagonista é uma mulher – todo mundo pensa que está se escrevendo e falando sobre mulheres. Mas quando um homem escreve um romance protagonizado por outro homem, todos pensam que ele está escrevendo e falando sobre a condição humana, certo? Bom, comigo é a mesma coisa, escrevo sobre o ser humano – o que acontece é que 51% são mulheres. 

    No que tange ao tema da loucura e criação, como essa discussão afeta particularmente as mulheres? Acha que existe um peso diferente entre os gêneros? A questão da criação funciona exatamente da mesma forma para os homens e para as mulheres. Mas é verdade que a repressão psiquiátrica foi usada contra as mulheres e contra todos os indivíduos que não cumpriam a norma, que não eram escravos, digamos, da ordem social estabelecida. Os homossexuais e pessoas de minorias étnicas também eram internados em hospitais psiquiátricos. E as mulheres que queriam sair do papel limitado da mulher tradicional, fruto do machismo, foram mais colocadas em hospitais psiquiátricos do que homens. Mas acho que esse tipo de distinção é muito mais de tempos passados ​​do que de agora. De qualquer maneira, ainda permanecem muitos resíduos sexistas na nossa sociedade, somos educadas nessa ideologia. E temos de ter muito cuidado e autoanálise para não cair nisso.

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    Pode explicar melhor? Há um estudo muito interessante que tem sido feito em vários países da União Europeia e nos Estados Unidos com médicos de família, clínicos gerais. Foi constatado que, em uma primeira consulta médica, com os mesmos sintomas, os homens são encaminhados mais ao especialista e as mulheres recebem mais ansiolíticos, consideradas neuróticas e histéricas. Antes da pandemia, em 2019, na Espanha, esta diferença de tratamento para os pacientes significava que as mulheres demoravam 13% mais tempo para chegar ao especialista do que os homens. E, pelo menos na Espanha, a maioria desses médicos de família são mulheres. Então, veja até que ponto todos nós ainda temos essas noções patriarcais enterradas profundamente em nossos cérebros. É incrível: embora muito progresso tenha sido feito, elas ainda estão à espreita.

    Suas narrativas costumam girar em torno de histórias não contadas, figuras invisíveis ou lados não explorados de temas comuns da existência humana. De onde partem essas inspirações? Você não escolhe as histórias que conta. Elas escolhem você. Um dia, aparecem na sua cabeça como uma imaginação que surgiu do nada. E de repente isso nos emociona tanto, nos perturba tanto, que nos obriga a escrever. Os romances são como sonhos noturnos que se sonham de olhos abertos, nascem do mesmo lugar do inconsciente. Então, não sei de onde vem esse interesse, mas descobri recentemente que os escritores podem ser divididos em dois grandes grupos: os que contam histórias do dia a dia, personagens do cotidiano; e os que apresentam personagens peculiares, extravagantes, extremos, pouco comuns, e em situações inusitadas. Pertenço a este segundo grupo, sou muito interessada nas fronteiras da realidade. Por quê? Bem, eu não saberia dizer, é assim que as coisas são. Outro autor que cultiva o peculiar e inusitado é Vladimir Nabokov, um dos meus grandes professores. E o interessante é que ao contar essas histórias de personagens que estão nos extremos, você consegue fazer com que pessoas comuns e normais se identifiquem com eles. Então isso indica que, como dizia o poeta e dramaturgo romano Terêncio, nada de humano nos é estranho. Dentro de cada um de nós estão todas as possibilidades do ser.

    A senhora emprega uma mistura de gêneros para escrever suas histórias, inclusive aspectos de sua trajetória no jornalismo. De que forma essas mistura de influências e experiências se mesclam para formar sua identidade como escritora? O pensador Isaiah Berlin divide os escritores entre ouriços, que escrevem sempre o mesmo romance, se aprofundando nele; e os escritores raposas, que caminham pela planície e estão sempre em busca de novos horizontes. Sou totalmente uma raposa. Procuro sempre escrever de onde não sei, explorar uma nova fronteira. Por isso faço uma mistura de gêneros, mas acredito que, no século 21, os gêneros não existem mais – escrevemos uma literatura mista, híbrida. Escolhi o jornalismo de mídia escrita como caminho profissional, para ganhar dinheiro e me sustentar. É um gênero literário como qualquer outro. Já a ficção faz parte de quem eu sou, escrevo desde os cinco anos de idade, como muitos romancistas. Enquanto escritora, considero que cultivo a ficção, o ensaio e o jornalismo. Cada um tem suas normas e regras, e são tipos de escrita completamente diferentes. É como quando você fala duas línguas e passa de uma para outra: são organizações diferentes de palavras e significados. No jornalismo, por exemplo, a clareza é um valor que torna o texto melhor; enquanto na ficção a ambiguidade é apreciada, quanto mais interpretações um romance tiver, mesmo que sejam contraditórias, melhor. 

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    Que efeito essa mistura de gêneros, que chama de “artefatos literários”, deve ter sobre o leitor? Não sei que efeito deveria ter. O que os leitores me dizem é que sentem que estão conversando comigo, e quase como se também estivessem conversando consigo mesmos. Eles se sentem muito desafiados e afetados pelos textos. Tanto em A ridícula ideia de nunca mais te ver como em O perigo de estar lúcida, muitas pessoas me escreveram, dizendo que eu estava falando delas, que se sentiram ali, se enxergaram ali. Então, de certa forma, acho que esses artefatos literários são muito íntimos. Embora eu não tenha planejado isso quando os escrevi, eles assumem um efeito de uma intimidade rara e tremenda.

    A senhora é crítica dessa onda recente que valoriza a auto-ficção na literatura. Por que acha que se dá essa exaltação? Vivemos em um mundo onde as certezas afundaram. Não acreditamos mais em quase nada. Parece que todos os grandes mitos da antiguidade estão sendo destruídos. E então, nesse mundo tão escorregadio, não me surpreende que surja a auto-ficção, porque indica que nem o próprio “eu” é crível, também se torna algo manipulável e ficcional. Por outro lado, o que acontece é que a auto-ficção parece algo demasiadamente egocêntrico, pequeno, desprovido do grande sopro da criatividade, da imaginação, dos sonhos de humanidade, que são os romances. E assim, se encorajamos e valorizamos a auto-ficção acima de tudo – e os críticos estão fazendo muito isso –, cortamos as asas da grande ficção.

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