Para os adolescentes ligados em rock, a sensação era de que um dia o Queen não estava lá e, no dia seguinte, já estava em toda parte: poucas vezes na história do pop se registrou uma ascensão tão veloz e repentina — e um auge tão duradouro e consistente. O quarteto formado em 1971, em Londres, não deixou de percorrer a via-crúcis das bandas iniciantes, dos shows em palcos obscuros às fitas-demonstração bancadas com as próprias economias. Mas quando estourou, com o álbum de estreia, em 1973, foi de maneira apoteótica: além do seu som potente, texturizado e melódico, de recorte algo kitsch mas irresistível, o Queen era liderado por um dos maiores performers já vistos — Freddie Mercury, um vocalista nascido para as arenas, o único espaço capaz de fazer jus a sua voz extraordinária e seu carisma fulgurante. Quando Mercury estava no palco, a audiência sorvia dele. Em Bohemian Rhapsody (Estados Unidos/Inglaterra, 2018), já em cartaz no país, o ator Rami Malek encarna com brilhantismo o jovem carregador de bagagens do aeroporto de Heathrow que virou o rei (ou a rainha) dos estádios: em um bar, apresentando-se pela primeira vez na companhia de Brian May (Gwilym Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello), Mercury apanha para se entender com o suporte do microfone — mas então, quando a falta de jeito está para descambar em vexame, Mercury enfim põe o microfone no devido lugar, como quem doma um tigre. Quem manda ali, não há dúvida, é ele.
A cena ilustra bem o espírito de Bohemian Rhapsody e, de certa forma, o espírito do próprio Queen. É novelesco e até popularesco. Mas, assim como a música da banda, é feito com uma sinceridade que se percebe genuína — e, por isso, como os hits do Queen, é frequentemente eletrizante e emocionante. É uma biografia repleta de liberdades factuais e também pudica no que toca aos excessos sexuais e químicos de Mercury, um símbolo da liberação gay. É de ponta a ponta, enfim, uma celebração do júbilo que Mercury sentia em estar diante de uma multidão e tê-la sob seu comando, do prazer com que explorava a voz de alcance impressionante (o que ele creditava aos incisivos a mais, que alargavam sua arcada) e da relação estreita, embora cheia de atrito, que ele viveu com os companheiros de banda. É também um tributo à coesão do Queen, nunca colocado em segundo plano pelo roteiro, e à convicção com que Mercury defendia seu trabalho — o que rende uma cena deliciosa em que o comediante Mike Myers, interpretando o executivo da gravadora EMI Ray Foster, desdenha da ideia de promover a longa e rocambolesca Bohemian Rhapsody nas rádios. “Precisamos de uma faixa que faça a garotada aumentar o som do carro e sacudir a cabeça”, diz Foster — uma brincadeira com a cena antológica do filme Quanto Mais Idiota Melhor na qual Myers e Dana Carvey cantam Bohemian Rhapsody do começo ao fim, sacudindo a cabeça, dentro de um carro, com o volume no máximo.
Para reforçar o tom de tributo, Bohemian Rhapsody escolhe terminar no momento de glória absoluta do Queen, com uma recriação perfeita — e de arrepiar — do show do grupo para o Live Aid, no estádio londrino de Wembley, em julho de 1985, tido como a mais memorável apresentação de uma banda de rock. (Essa foi a primeira sequência rodada pelo diretor Bryan Singer, e é cerzida com costura invisível a imagens reais do Queen no palco. Singer seria depois demitido a três semanas do fim das filmagens, e substituído por Dexter Fletcher, em razão de uma briga feia com Malek.) Mais do que tudo, o show significava, para ele, uma reconciliação com os amigos, depois de anos de estranhamento musical e pessoal, e um reencontro com a criatura que sempre desejara ser mas perdera de vista durante um hiato do Queen, dedicado a incursões-solo e ao comportamento autodestrutivo.
O acanhamento do filme em sondar o lado selvagem de Mercury provocou a desistência do primeiro ator escolhido para o papel, o Sacha Baron Cohen de Borat. A substituição, porém, resultou estrondosa. O filho de egípcios Rami Malek, da série Mr. Robot, deixa-se tomar pela personalidade de Mercury com uma entrega assombrosa. Malek enverga com ar de desafio a prótese que reproduz o aspecto de limpa-trilhos dos dentes superiores do cantor, diverte-se tanto quanto Mercury com o frisson que sua extravagância causava e sofre como ele sofria com suas contradições irreconciliáveis. A mais nítida delas é a paixão por Mary Austin (Lucy Boynton), que conheceu na época em que se juntou ao Queen e que, a despeito da incompatibilidade sexual que a certa altura se tornou incontornável, foi um de seus dois grandes amores (o outro foi Jim Hutton, com quem ele viveu até sua morte; Mary continuou a ser sua melhor amiga, e herdou boa parte de sua fortuna). Muito acertadamente, Bohemian Rhapsody omite o longo trecho de doença que se seguiria do show em Wembley até a morte do cantor em decorrência da aids, em 1991: este Mercury, o cometa exótico dos palcos, é o que o filme quer deixar na lembrança — e o que ganhou o direito de ser lembrado.
Teatro de revista com guitarra e bateria
O Queen era rococó demais para o gosto do influente crítico Nick Kent, um apaixonado pelo primitivismo rude do rock. “Eles vão de encontro a tudo em que acredito”, escreveu na autobiografia. As letras miquelinas do quarteto formado por Freddie Mercury (vocais), Brian May (guitarra), Roger Taylor (bateria) e John Deacon (baixo) também não tinham estofo intelectual para cair no gosto de uma Rolling Stone — que ouviu um slogan fascista no refrão “we will rock you” (“vamos sacudir vocês”, em português). Mas são essas características tão odiadas por tantos críticos que tornaram o Queen uma das bandas mais emblemáticas da história do rock. Pomposo, grandiloquente, o quarteto inglês vivia no limite entre o teatro musical e o cabaré mais sem-vergonha. Embora tenha momentos de exibicionismo musical, o bom humor distanciou o som do Queen da ranhetice do rock progressivo que imperava quando o grupo surgiu, nos anos 70. O melhor retrato da banda é A Night at the Opera, de 1975. Famoso pelo sucesso Bohemian Rhapsody (que dá título à cinebiografia de Mercury), é teatro de revista empacotado em um álbum de rock.
A banda também era exuberante, e não só pelos figurinos de babados e quimonos de seu cantor. Os solos de May são delicados e barrocos, em contraste com a agressividade típica dos guitarristas de seu tempo. Taylor, na contramão, é uma versão exagerada da selvageria dos bateristas de rock — um instrumentista de golpes nervosos e pancadas extras no prato. Deacon sempre foi a única figura discreta em cena. E Freddie Mercury, claro, era a estrela — o artista que faz por merecer uma cinebiografia póstuma. Versão masculina (ou, quem sabe, mais feminina) de uma Liza Minnelli, era um cantor de alcance vocal absurdo e carisma de palco absoluto, um frontman capaz de magnetizar multidões — como se pôde ver nos shows no Rock in Rio, em janeiro de 1985, e no Live Aid, em julho do mesmo ano. Hoje se fala na sua “ambiguidade” sexual, mas o fato é que ele nunca escondeu suas preferências. No começo da carreira, disse a uma jornalista inglesa que era “tão gay quanto uma margarida”. Nunca houve dúvida sobre quem era a rainha do Queen.
Sérgio Martins
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2018, edição nº 2607