O gosto quase obsessivo de Itamar Vieira Junior pela literatura é algo que o próprio tem dificuldades de explicar. Estudante de uma escola pública na infância, valia-se da amizade de um vizinho que estudava num colégio particular para lhe trazer livros emprestados da biblioteca. “Ele me entregava de dia e eu passava a madrugada lendo, para devolver na manhã seguinte”, conta o baiano, hoje com 41 anos. A paixão quase clandestina – a família temia que ele seguisse a carreira de escritor, profissão que não lhe garantiria um sustento – ganhou outro impulso quando uma professora lhe apresentou com fervor religioso os romances regionalistas da década de 30, assinados por nordestinos renomados como Graciliano Ramos, José Lins de Rego e Rachel de Queiroz.
Anos mais tarde, Vieira Junior, formado em Geografia, se surpreendeu quando deixou a agitada vida em Salvador para se embrenhar pelas regiões rurais do Maranhão como analista no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Achei que a realidade das obras escritas há mais de setenta anos tivesse sido superada, mas não. No campo, o país não caminha”. O choque o fez tirar da gaveta um sonho antigo. Ao terminar o doutorado em antropologia e com um emprego estável, como os pais queriam, ele se dedicou no tempo livre à escrita de seu primeiro romance, o hoje premiado e popular Torto Arado (Todavia).
Na trama, duas irmãs, Belonísia e Bibiana, se dividem no protagonismo ao narrar a vida de trabalhadores de Água Negra, uma fazenda na região da Chapada Diamantina, interior da Bahia. Para além de uma investigação social, o livro é um belíssimo romance que não só bebe da tradicional literatura regionalista do passado que inspirou o autor, como traz novo fôlego ao gênero, com pitadas de realismo mágico e um aprofundamento inédito em questões identitárias. Enquanto romances aclamados de época, a exemplo de O Quinze (1930) e Vidas Secas (1938), de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, respectivamente, denunciam o descaso social do país para com a população à mercê da sorte e da chuva em regiões de pobreza e seca, Torto Arado investiga as raízes da diáspora africana e dá aos seus personagens, especialmente mulheres, não caráter de vítimas, mas de agentes que, entre romances, amizades, violências e crenças, tomam para si, aos trancos e barrancos, o direito à própria história.
Com um rigor linguístico elegante, que traz termos da oralidade regional sem comprometer a fluidez do texto para leitores dos mais variados, o romance teve uma trajetória peculiar. Pensada pelo autor aos 16 anos de idade, a história só ganhou corpo de fato na vida adulta, com a bagagem das andanças e dois livros de contos lançados. Em 2018, conquistou o prêmio Leya, que elege livros inéditos em língua portuguesa, honraria acompanhada de 100 000 euros e a publicação da obra em Portugal. A trama tão local fez sucesso por lá antes do Brasil. Em Lisboa, para receber o prêmio, Vieira Junior refletiu sobre a história de sua família – miscigenação que resume em muito a experiência de ser brasileiro. “Meus trisavós deixaram Portugal vítimas da pobreza extrema. Nem sabiam ler quando chegaram ao Brasil e nunca puderam retornar ao país. Foi uma alegria ser o primeiro a voltar e agora como escritor”, conta Vieira Junior, que carrega nas veias também sangue de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de indígenas Tupinambás.
Lançado no Brasil em 2019, o livro cresceu no boca a boca, especialmente nos últimos meses, quando conquistou o Jabuti de romance literário. Na próxima sexta-feira, dia 18, ele ainda pode sair vencedor de mais uma cerimônia: o pop Oceanos, um dos mais relevantes prêmios da literatura em língua portuguesa, no qual Vieira Junior está entre os finalistas, concorrendo com nomes como o moçambicano Mia Couto e o brasileiro Chico Buarque. A trajetória de Torto Arado continua ascendente. Já foi lançado na Itália, tem traduções em inglês, espanhol e francês encaminhadas, e foi adquirido pela produtora do cineasta Heitor Dhalia, com a expectativa de que seja adaptado para uma série de TV. Um produto brasileiro tipo exportação.