Quando a Globo anunciou a inédita suspensão das gravações de suas novelas em virtude do coronavírus, em 16 de março, não foram só os espectadores que tiveram surpresas. Ao saber que a reprise de Fina Estampa substituiria Amor de Mãe no horário das 9, o intérprete de um tipo popular da trama de 2011 — o mordomo gay Crô — tomou um susto. “Eu fiquei sabendo como a maioria dos brasileiros, pelas chamadas da Globo”, contou o ator Marcelo Serrado a VEJA (leia a entrevista abaixo). Após a perplexidade, veio a satisfação: Serrado pôde curtir a volta triunfal de Crô, cujos trejeitos e bordões estão de novo na ordem do dia, de modo inusual para uma estrela de TV. “Meus filhos estão vendo a novela comigo. Isso não tem preço”, diz.
Transcorrido um mês da guinada radical na grade, já dá para detectar outro foco de satisfação: a cúpula da emissora. A estratégia de combinar onze horas diárias de jornalismo com reprises de velhos sucessos resultou em uma liderança geral no ibope como a emissora não via fazia tempo, na casa dos 18 pontos — mais que a soma das rivais. O que parecia uma hecatombe na programação revelou-se um trunfo. Além das novelas, a Globo descobriu um campo imenso a explorar na área do esporte. Com a seca de futebol na TV, o espectador ficou carente de opções — não à toa, a reprise da final do pentacampeonato da Copa de 2002, quando o Brasil derrotou os alemães por 2 a 0, rendeu audiência maior que a obtida com atrações inéditas no domingão de Páscoa. O futebol requentado, claro, não sairá do ar tão cedo.
Antes de colherem esses frutos, os executivos da Globo viveram dias tensos. “Nunca tinha visto algo parecido na televisão, só em filme de ficção científica”, diz Silvio de Abreu, diretor-geral de dramaturgia da Globo. A seleção das reprises foi feita de última hora. “Tomamos a decisão de mudar numa quinta-feira. Em três dias, até o domingo 15, tivemos de bater o martelo sobre quais novelas seriam reprisadas”, afirma Amauri Soares, diretor da central de programação da emissora. A Globo não confirma, mas sabe-se que até o minuto final havia três candidatas à faixa das 9, horário de maior audiência da televisão: fora Fina Estampa, estavam no páreo Amor à Vida (2013), de Walcyr Carrasco, e A Força do Querer (2017), de Gloria Perez. A trama de Aguinaldo Silva prevaleceu por ser a mais antiga e conter ingredientes úteis diante do baixo-astral do coronavírus.
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A ideia era oferecer uma dose extra de escapismo às massas. Além da realidade difícil, o momento impunha outro desafio: na quarentena, pais, filhos e avós passaram a conviver dentro de casa por mais tempo. E isso afeta o modo como as pessoas consomem TV. “A família está mais que nunca sentada junta na sala”, lembra Soares. Fina Estampa casou bem com o contexto atual: tem trama leve e personagens marcantes como Crô e a Pereirão de Lilia Cabral. “A novela tinha o que acreditávamos ideal para exibir em uma pandemia cruel”, diz Abreu.
Enquanto as reprises em outras faixas não decepcionam, mas também não são lá uma Brastemp, Fina Estampa obteve um feito maroto: foi a melhor estreia das 9 em muito tempo. Mantém, até agora, um ibope no patamar dos 35 pontos — número superior à média geral de sua antecessora, Amor de Mãe. Isso tem a ver com os apelos óbvios da nostalgia e da leveza da narrativa, mas também expõe duas verdades menos óbvias. A primeira delas é o fato de que há mais aparelhos ligados — traduzindo: as pessoas estão vendo mais TV por não poder sair de casa. Mas o charme da panela velha reside também na comparação com Amor de Mãe: a história de Manuela Dias tocava em assuntos importantes, como a violência doméstica e o racismo, porém sua estridência engajada às vezes cansava. Ironicamente, a novela sofreu uma pausa abrupta bem na semana em que escancarava uma correção de rota folhetinesca que finalmente fez seu ibope deslanchar — a conversão da personagem de Adriana Esteves em uma vilã à la Carminha. No que isso vai dar? Fica para a próxima temporada, depois da pandemia.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683
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