Lá pelo início dos anos 80, Carla Madeira estudava matemática na Universidade Federal de Minas Gerais e pegava carona com o pai, professor do mesmo curso na instituição. Certo dia se assustou quando, ao entrar no carro, viu o pai emocionado com uma história que acabara de ouvir. Tratava-se de uma mulher que, irritadíssima com o filho no ônibus, desceu do veículo, deixou a criança na calçada e subiu novamente, indo embora. A cena perseguiu Carla desde então. “Pensava naquela criança, em como ela confiava na proteção da mãe e foi traída. Mas busco entender o lado da mãe e o que leva alguém ao extremo”, conta a VEJA a autora mineira de 57 anos. Trama semelhante conduz seu terceiro e novo romance, Véspera. Nele, uma mãe com os nervos à flor da pele para o carro e deixa o filho de 5 anos na rua em Belo Horizonte. Rapidamente ela se arrepende, mas, quando retorna para buscá-lo, o menino não está mais lá.
A obra chega às livrarias em um momento propício. Recentemente, Carla caiu nas graças de novos leitores, que fizeram dela a segunda escritora brasileira mais vendida do ano, atrás de Itamar Vieira Junior, com o pop Torto Arado. O carro-chefe é seu primeiro romance, Tudo É Rio, lançado de forma independente em 2014 e relançado neste ano pela Editora Record — que também publica Véspera. Somados à segunda obra da autora, A Natureza da Mordida, de 2018, os livros formam uma espécie de trilogia emocional, com histórias de famílias comuns que, atravessadas por dilemas morais e episódios de violência, lidam com o indefensável na intimidade do lar.
Em Véspera, Vedina, a mãe que busca o filho após largá-lo na rua, é, por assim dizer, um efeito colateral da história central, protagonizada pelos irmãos gêmeos Caim e Abel. Embriagado e ressentido, o pai batiza os filhos com os nomes dos trágicos irmãos bíblicos, em um ato de vingança contra a frieza da mulher beata. Se na narrativa religiosa Caim mata Abel por ciúme, aqui a autora inocenta Caim diante da personalidade questionável de Abel — que será, no futuro, marido de Vedina e pai do menino desaparecido.
Dona de uma escrita precisa, poética, mas sem afetações, Carla trocou a matemática por jornalismo quando o gosto pelas palavras falou mais alto. O mergulho na ficção surgiu por acaso, quando imaginou o triângulo amoroso de um homem, sua mulher e uma prostituta em Tudo É Rio. Ela escreveu até chegar à cena em que narra uma agressão revoltante (mais detalhes do que isso é spoiler), que deixou a própria em choque, condenando o livro a catorze anos na gaveta. Questionada sobre como é possível se surpreender com a própria escrita, Carla é prática: “Ao escrever, empresto meu corpo aos personagens. São pessoas imprevisíveis, que agem de forma absurda. Por isso, tento ver todos os lados antes da inevitável explosão”. O exercício de empatia é difícil, mas instigante quando vindo da pena da autora.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764
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