No auge da carreira, em 1951, a soprano Maria Callas fez uma série de apresentações no Brasil. Mas, ao visitar os trópicos, a virtuose de origem grega não deu apenas mostras de seu talento. Callas arrumou encrenca até com camareiros de hotel e cancelou em cima da hora uma das récitas, alegando mal-estar. Tudo condizente com a fama de ser a mais intratável das primas-donas. Na mesma medida em que era inegavelmente difícil, contudo, Callas colecionou tragédias e episódios de instabilidade emocional ao longo da vida. Agora, uma nova biografia pretende iluminar as razões desse comportamento errático. Lançada na Inglaterra na quinta 17, e ainda sem data para chegar ao país, Cast a Diva — The Hidden Life of Maria Callas reforça a tendência da historiografia atual de revisar a trajetória de mulheres célebres — de Ada Lovelace a Catarina, a Grande — sob um prisma feminista. Segundo sua autora, a irlandesa Lyndsy Spence, Callas teria sido vítima do machismo de seu tempo. “De fato, ela foi agressiva e arrogante na juventude. Mas muita coisa a seu respeito foi distorcida. Ninguém procurou entender a mulher por trás do mito”, afirmou Lyndsy em entrevista a VEJA.
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Na ópera, o mito de Maria Callas (1923-1977) é inquestionável. Ela era o que os especialistas chamam de soprano absoluta — uma intérprete capaz de atingir notas em um impressionante espectro sonoro. Nascida em Nova York, numa família de imigrantes que logo retornaria à Grécia por dificuldades financeiras, ela desde cedo teve de superar obstáculos para fazer valer seu dom artístico. Inclusive dentro do lar. O livro reconta sua relação conturbada com a mãe a partir de um manancial de informações inéditas: as mais de 200 cartas enviadas por 25 anos a seu padrinho e confidente, Leo Lerman, encontradas nos acervos das universidades Stanford e Columbia. A correspondência revela que, durante a II Guerra, a mãe oferecia as filhas para sexo aos soldados nazistas e italianos que ocupavam Atenas, em troca de dinheiro. Jackie, a irmã curvilínea, foi obrigada a se prostituir. Maria Callas, fora desse padrão de beleza, escapou porque os soldados preferiam pagar para ouvi-la cantar. Anos mais tarde, quando ela já era uma estrela, a mãe fez chantagem: ameaçou falar do passado da família se não lhe desse dinheiro.
Seus casamentos não foram menos complicados: Callas hoje seria considerada uma vítima de “machos tóxicos”. A autora a retrata como uma mulher submissa ao primeiro marido, Giovanni Meneghini. Quase trinta anos mais velho, ele maltratava e roubava dinheiro da então jovem estrela. Mas é sobre o avassalador relacionamento com o magnata grego Aristóteles Onassis, nos anos 60, que surgem as revelações mais chocantes. Callas confidencia nas cartas que Onassis a dopava e aproveitava para abusar dela sexualmente. Quando não conseguia, ele a humilhava, dizendo que Callas tinha só um apito na garganta.
Foram notoriamente traumáticos dois lances da vida com Onassis — a perda de um bebê recém-nascido e a traição com a ex-primeira-dama americana Jacqueline Kennedy, por quem ele a trocaria. O estrago maior foi tê-la feito perder sua autoestima musical: Onassis fez de tudo para enterrar sua carreira, lançando Callas no mundo de aparências das colunas sociais. Pode-se dizer, aliás, que ela marcou a transição entre o velho perfil das divas de ópera rechonchudas e a era das celebridades com corpinhos de pin-ups. Depois de Onassis, sua vida foi ladeira abaixo. O vício em remédios agravou um distúrbio neuromuscular que comprometeria cada vez mais sua bela voz. “A tragédia da vida de Maria é que ela basicamente pedia ajuda, mas as pessoas diziam que ela era maluca”, diz Lyndsy Spence.
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A passagem pelo Brasil foi rápida, mas revelou-se um ponto de virada em sua biografia. Surgiu no país sua visceral rivalidade com a italiana Renata Tebaldi. Durante apresentação no Municipal do Rio, as duas combinaram que não cantariam o bis para que uma não ofuscasse a outra. Callas cumpriu o acordo, mas Renata, não. A partir daí, o que era uma cordial amizade deu lugar a uma renhida batalha de egos. O tour nacional também trouxe à luz uma de suas perdições, a obsessão por dietas. Diz a autora que seu “bolo” na récita paulistana não decorreu de um ataque de estrelismo, e sim de uma razão constrangedora: com 90 quilos, a diva não teria cabido no figurino. Ao voltar para a Itália, ela perderia quase metade do peso, e passaria o resto da vida lutando contra a balança. “Ela se tornou a primeira cantora de ópera glamorosa”, diz Lyndsy. Ser um mito cobrou um preço altíssimo da mulher real.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743
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