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Biografia examina vida do historiador Eric Hobsbawm, ídolo da esquerda

Intelectual se equilibrou entre o brilho intelectual e a defesa do indefensável

Por Vinícius Müller
Atualizado em 4 jun 2024, 13h32 - Publicado em 25 jun 2021, 06h00
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  • LÍDER DA REVOLUÇÃO - Hobsbawm: “Feio como o pecado, mas que cabeça” -
    LÍDER DA REVOLUÇÃO - Hobsbawm: “Feio como o pecado, mas que cabeça” – (LEEMAGE/AFP)

    Já avançava por mais de 200 páginas do caudaloso livro do acadêmico inglês Richard J. Evans quando fui atropelado por um trecho: “Em junho (de 1950), Muriel admitiu que tinha um amante; mas nem assim Eric se sentiu magoado; ficou mais preocupado pelo homem não ser membro do Partido Comunista do que com o adultério da esposa”. O marido traído é Eric Hobsbawm, um dos mais influentes intelectuais do século XX e dono de uma trajetória tão fascinante que quase não cabe na biografia escrita por Evans. Eric Hobsbawm — Uma Vida na História retrata a longa jornada humana — o intelectual morreu em 2012, aos 95 anos — de uma personalidade genial envolta em grandes eventos do século passado. Uma existência também marcada, porém, por fragorosos enganos.

    Nascido no Egito, em 1917, Hobs­bawm viveu com sua família judia em Viena antes de mudar-se para Berlim. Encantou-se pelo comunismo em meio à ascensão nazista. E nunca mais abandonou suas convicções marxistas, substituindo a errática identidade familiar pelo aconchego promovido pelos companheiros de partido. Também transformou algumas de suas características pessoais, reveladas pelo título de um dos capítulos (“Feio como o pecado, mas que cabeça”), em algo charmoso. Como se nos dissesse que a pobreza da infância e sua pouco apreciada aparência foram sublimadas por sua erudição comunista. E foi nisso, um intelectual comunista, que Hobs­bawm se transformou quando se instalou na Inglaterra, onde se formou em história, por Cambridge, serviu ao Exército durante a II Guerra e construiu uma vasta e respeitada obra. Ainda foi fundador de duas das mais importantes revistas acadêmicas de todos os tempos, a Past & Present e a New Left Review, por onde passaram autores fundamentais da historiografia marxista britânica, como Edward Thompson e Christopher Hill.

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    Boa parte dessa história é conhecida. A novidade apresentada por Evans é o modo como Hobs­bawm se equilibrou entre os inúmeros galhos que formavam sua vida (aliás, Hobsbawm significa “árvore frutífera”). Tal qual um pêndulo, o autor do clássico A Era das Revoluções oscilou entre a singularidade e a generalização capaz de lhe oferecer algum sentido de pertencimento. Assim, o judaísmo, em princípio pouco relevante, foi fundamental para sua oposição ao nazismo. Do mesmo modo, sua fidelidade ao Partido Comunista foi relativizada quando os horrores do stalinismo foram revelados. Mas também justificou e condenou, concomitantemente, os crimes soviéticos nas invasões da então Checoslováquia e Hungria.

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    PRESTÍGIO POP - Com o ex-presidente FHC: amigo dos brasileiros e fã de jazz – (Jefferson Rudy/Folhapress/.)
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    Ou seja: Hobs­bawm buscava um difícil equilíbrio entre a fidelidade às posições ditadas pelo Partido Comunista e o apego às suas idiossincrasias. Condenava os caminhos que alguns intelectuais marxistas tomavam nos anos 60, como Herbert Marcuse e sua aproximação da psicanálise com a revolução. Buscou, por outro lado, formas originais de abordar as noções de classe e os novos agentes dessa mesma utopia revolucionária. Ficou entusiasmado com o fenômeno do “banditismo social”, o que talvez explique por que gostava tanto do Brasil.

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    Hobs­bawm enxergava na América Latina um local privilegiado para a ascensão de uma nova consciência de classe, antessala para a transformação social por meio da revolução. Ele esteve por aqui em muitas ocasiões e ainda exerce fascínio sobre brasileiros com alguma erudição. Era amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma rápida olhada na bibliografia de cursos de história, do ensino médio ao superior, comprova sua condição de ídolo pop entre nós. Mesmo em seu cabotinismo, o ex-presidente Lula, na apresentação que faz no livro, nos revela essa popularidade.

    ERIC HOBSBAWM — UMA VIDA NA HISTÓRIA, de Richard J. Evans (tradução de Claudio Carina; Crítica; 728 páginas; 159,90 reais e 39,99 reais em e-book) -
    ERIC HOBSBAWM — UMA VIDA NA HISTÓRIA, de Richard J. Evans (tradução de Claudio Carina; Crítica; 728 páginas; 159,90 reais e 39,99 reais em e-book) – (./.)
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    Hobs­bawm se manteve ambíguo também em questões pessoais. Sentia-se cidadão britânico, assim como seu pai. Mas, ao escrever em seu diário, o fazia em alemão, língua da mãe. Até o jazz, paixão relacionada à fase de sua vida composta de breves amores regados por muito álcool, foi tema de inúmeros artigos escritos sob o pseudônimo de Francis Newton. Dessa racio­nali­zação nasceu o brilhante A História Social do Jazz, livro dos mais conhecidos de seu vasto catálogo.

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    A ambiguidade revela-se, ainda, pela reação inusitada à traição da primeira esposa: sua vida amorosa subordinada à posição ideológica, ainda que tenha levado anos para superar a separação. Tempos depois, casou-se com Marlene Schwarz e teve um casal de filhos. Foi nesse período de estabilidade familiar que viveu seus dias mais produtivos e lucrativos. Trabalhou nos EUA financiado pela Fundação Rockefeller, comprou uma ampla casa em Londres e contratou um advogado para fazer seu testamento. Tudo bem burguês.

    Afinal, era inteligente e viveu o suficiente para perceber que suas previsões amparadas no marxismo eram derivadas muito mais de desejo do que de seus estudos. Talvez como John Lennon — cujo sucesso Hobsbawm achava que seria efêmero —, em certo momento da vida virou herói da classe trabalhadora. A biografia de Hobs­bawm prova que é possível ter uma obra significativa e uma vida brilhante mesmo estando quase sempre errado.

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    Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744

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