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Barba, cabelo e sons

Recém-premiado com o Grammy de melhor disco de jazz latino, Hermeto Pascoal ainda compõe sem parar aos 82 anos e é um manancial de histórias da MPB

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jan 2019, 07h00 - Publicado em 4 jan 2019, 07h00

Ao nascer, Hermeto Pascoal não chorou como uma criança qualquer. Para o maestro, compositor e instrumentista alagoano de 82 anos, seu berreiro primal já continha qualidades musicais inequívocas. “Meu primeiro som surgiu ali”, diz ele, em seu apartamento, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tratando-se de Hermeto, anedotas assim não surpreendem: os experimentalismos surreais sempre foram sua marca. O músico já engatou “diálogos” musicais com vacas e passarinhos. Criou instrumentos a partir de abóboras e penicos (sim, penicos). Protagonizou encontros inusitados com ídolos da MPB e do jazz. Os causos vão tão longe quanto sua copiosa barba branca. Mas a reputação do músico suplanta a figura folclórica: vibrantes e inovadoras, suas obras não raro ganharam o devido reconhecimento internacional. Em 2017, ele recebeu o título de doutor honoris causa do prestigioso New England Conservatory, em Boston. “É uma escola mais importante do que Berklee, que ficou meio turística”, afirma, referindo-se a outro conservatório famoso da cidade americana. Em novembro passado, o álbum Natureza Universal foi agraciado com o Grammy Latino de melhor disco de jazz — um raro brasileiro premiado fora de categorias regionais. “Não fui cachorro, não”, diz.

Hermeto é acometido por irrefreáveis fervores criativos: de copos a pratos de plástico, tudo serve de base para as anotações de suas partituras — em meio às quais o irreverente maestro rabisca desenhos de monstrinhos. Ele define seu trabalho como “música universal”. Faz sentido: suas composições mesclam ritmos regionais como o forró e o baião ao jazz americano. A marca pessoal está na criatividade que imprime aos arranjos. “Ele é o velho sábio e o garoto levado, tudo junto em um só”, diz o pianista Jovino Santos Neto, seu parceiro de 1977 a 1992. Hermeto exibe também uma generosidade ímpar no show­biz. Em seu site, autoriza músicos a usar suas partituras de graça — diz que é melhor não ter dinheiro do que não ser tocado. “Existe muito interesse dos jovens pela música de Hermeto”, diz o pianista André Marques, membro de sua banda atual.

JUVENTUDE - Com Airto Moreira e Flora Purim: Hermeto viveu no exterior, mas voltou por saudade do ‘cheirinho do povo’ (Hulton Arhive/Getty Images)

Às vezes, o jeito magnânimo é posto à prova. Em 1971, o trompetista americano Miles Davis (1926-1991) gravou as músicas Capelinha e Nem um Talvez sem dar crédito ao brasileiro. “Ele era rico, não acredito que tenha se aproveitado de mim”, defende Hermeto. O que não livrou Davis de provar da mão forte do cabra alagoano. Fã de boxe, o americano o convidou para lutar. “Dei-lhe uma porrada na cara e quase quebrei a mão”, conta Hermeto. Não é a única história boa de sua relação com grandes jazzistas. Slaves Mass, disco de 1977 que é um dos melhores de sua carreira, traz homenagem ao saxofonista Cannonball Adderley (1928-1975). Emocionada, a viúva de Adderley quis presentear Hermeto com um saxofone que pertencera ao marido. Ele declinou: disse que era melhor dar o instrumento a um estudante de música.

MESTRE E DISCÍPULO - Hermeto (à esq.) com seu precursor na sanfona, Sivuca: grandes amigos e quase clones albinos (Fábio Seixo/Agência O Globo)

Na juventude, Hermeto pensou em entrar para o Exército — mais para tocar com a banda militar do que para dar tiros. Não passou na seleção por causa de uma deficiência congênita nos olhos, problema decorrente de ser albino. “Virou um charminho. As meninas nunca sabiam para quem eu estava olhando.” Em 1950, ele deixou sua Alagoas de origem para seguir carreira no Recife. A destreza com que tocava sanfona na rádio rendeu­-lhe o epíteto de “Sivuquinha, o maior sanfoneiro do agreste pernambucano”. O apelido não é sua única ligação com o Sivuca (1930-2006) original. Foi o amigo — também albino — quem resgatou Hermeto quando este foi demitido da rádio por insistir em tocar sanfona em vez de pandeiro. Oito anos depois de migrar para o Recife, Hermeto mudou-se para a Zona Oeste do Rio, onde mora até hoje com um de seus seis filhos.

BARRACO – Com Elis Regina, na noite famosa em Montreux: um tapão carinhoso (Montreaux Festival/.)

Na sua trajetória há preciosidades como o Quarteto Novo, grupo que criou ao lado do guitarrista Heraldo do Monte, do baixista e violonista Théo de Barros e do percussionista Airto Moreira. Foi Airto, aliás, quem o levou para os Estados Unidos nos anos 70. Lá, Hermeto gravou com Moreira e a mulher dele, a cantora Flora Purim. Mas o amor pelo Brasil fez com que desistisse de morar no exterior. “Gosto do cheirinho do povo.” Sua apresentação com Elis Regina (1945-1982) no lendário festival de jazz de Montreux, em 1979, rendeu um barraco clássico do showbiz brasileiro. Enquanto tocava Asa Branca ao piano, ele emendou a canção de Luiz Gonzaga, sem aviso, com uma bossa nova improvisada. Visivelmente irritada, Elis não se fez de rogada: tascou um tapão em sua mão. “Que nada. Foi um tapa carinhoso”, diz ele. “Se tivesse uma caminha ali, a gente até caía junto.” Nem a diva mais temperamental resistiria ao velho bruxo barbudo.

Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616

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