Em 2006, a jornalista Karina Sainz Borgo deixou a Venezuela rumo à Espanha. A decisão foi motivada por medo e pela sensação de ser expelida da própria pátria, ao testemunhar a crescente onda de repressão do governo de Hugo Chávez contra os opositores e a imprensa. “Vi o país se desfigurar. A barbárie, a escassez, a inflação, a falta de liberdades individuais. Não reconhecia mais aquela nação”, contou ela a VEJA. A perda das raízes e o sentimento de culpa pela fuga levaram-na a tecer o excelente romance Noite em Caracas. Dona de uma escrita envolvente, a autora de 36 anos, convidada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), transforma um drama familiar em metáfora política. Logo na primeira linha, a protagonista Adelaida Falcón vela a mãe morta, enterrada com os poucos pertences que sobraram da pequena família formada apenas pelas duas, que comungam também o nome. Mãe e filha viveram a bonança da alta do petróleo em Caracas, até a chegada da crise econômica. Viram o avanço das milícias pró-regime e de um obscuro mercado negro, em que produtos básicos, de comida a absorvente, são vendidos por preços exorbitantes ao lado de remédios sem regulamentação, como a quimioterapia comprada por Adelaida para tentar salvar a mãe do câncer. O cenário anárquico conduz a uma distopia. “Já não éramos um país, éramos uma fossa séptica”, escreve.
Sobram para Adelaida, revisora de jornal de 30 e poucos anos, um apartamento, alguns euros escondidos (moedas estrangeiras estão proibidas, pois são consideradas uma traição) e as louças de que a mãe cuidava com apreço — itens que, até o fim do livro, serão postos em risco. Ao se ver em perigo, ela descobre que uma vizinha solitária morreu, deixando um passaporte europeu. A protagonista precisa então escolher se, além da mãe, enterrará também a própria identidade — e sua nação.
Karina criou a trama em 2017, depois de acompanhar o feroz ataque do regime de Nicolás Maduro a uma manifestação de estudantes. “Eu me sentia culpada por ter deixado o país. Achei que escrever me ajudaria, mas não. Romances não corrigem a realidade.” A ficção alegórica a ajudou a extravasar sentimentos de um modo que a reportagem não permitiria. Nenhuma autoridade venezuelana é citada pelo nome. Chávez é o “Comandante”. Seus apoiadores, militares e civis, todos acima da lei, são os Filhos da Revolução e os Motoqueiros da Pátria — referência aos milicianos que, na vida real, sequestram, matam e roubam, circulando com suas motos entre protestos e bairros pobres. “Já contaram a história desses líderes, mas não a das vítimas e dos que resistem. São esses que me interessam”, afirma Karina.
Matéria-prima parecida embala a mexicana Valeria Luiselli, outra autora latina que usa a ficção para expor as dores de uma tragédia nacional e chorar suas vítimas — que, para ela, são personagens de coragem e resiliência. Filha de pai diplomata, Valeria, de 35 anos, cresceu em lugares como a Índia e a África do Sul. Para recuperar suas raízes, fez faculdade na Cidade do México antes de optar pela vida em Nova York, onde se estabeleceu como professora e acumula elogios por sua escrita poética carregada de referências culturais. Seu novo livro, Arquivo das Crianças Perdidas, foi inspirado na experiência como voluntária de uma organização que ampara menores detidos na fronteira entre México e Estados Unidos.
No romance, um casal entra em crise enquanto produz duas pesquisas: ele, sobre a história dos apaches; ela, sobre crianças presas na fronteira. A dupla de pesquisadores não tem nome, assim como seus filhos de relacionamentos anteriores: o marido tem um menino e a mulher, uma filha. Ao perceber a animosidade entre os pais, o menino foge com a irmã, na esperança de prolongar a relação entre ambos e também de encontrar duas meninas mexicanas de que a mãe tanto fala. A inspiração veio da história real dessas irmãs, uma de 7 e a outra de 5 anos, detidas no Texas com o número de um telefone bordado em seus vestidos. Chegando aos Estados Unidos, elas ligariam para o familiar do contato. “Crianças assim são tratadas como criminosas. Enfrentam com bravura o risco de morrer em busca de um futuro”, disse Valeria a VEJA.
Após um ensaio sobre o assunto, a autora achou no romance uma forma de dar voz às crianças, e não às autoridades que as tratam como números: são mais de 14 000 menores imigrantes presos. “Fiz este livro para extravasar a raiva”, diz. Assim como Karina, Valeria percebeu, no processo, que há um limite à expiação da culpa por meio da ficção. “Não encontrei uma solução. Mas sei como é estar em um país que repele seus cidadãos.”
Publicado em VEJA de 17 de julho de 2019, edição nº 2643
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