As revoluções dos 100 anos da Disney – e os desafios para manter sua magia
O gigante enfrenta um teste de resiliência que ele já superou no passado
Walt Disney (1901-1966) tinha um apego por personagens que, apesar das condições desfavoráveis, davam a volta por cima alcançando sonhos impossíveis. Os clássicos do estúdio fundado por ele atestam essa predileção: do boneco de madeira que almeja se tornar humano até a sereia que faz de tudo para ter pernas, os sonhadores “azarões” são um denominador comum na mitologia da Disney — sendo seu próprio fundador um deles. De origem humilde, vivendo de bicos e morando de favor na casa de parentes, Walt Disney desafiou as circunstâncias ao unir ilustração e cinema, duas formas de arte que mal conversavam nos primórdios de Hollywood. Sem conseguir emprego num grande estúdio, o artista de veia empreendedora não se deu por vencido: em 16 de outubro de 1923, na garagem de um tio em Los Angeles, Walt e seu irmão Roy O. fundaram o Disney Brothers Cartoon Studio. A empreitada foi a centelha fundadora do império que aprendeu, como nenhum outro, a monetizar a diversão: ao longo dos anos, a Disney se expandiu em parques, resorts, cruzeiros, produtos licenciados, canais de TV e, recentemente, chegou ao streaming e aos games — um conglomerado que hoje vale estonteantes 148 bilhões de dólares.
Walt Disney: O triunfo da imaginação americana
Cem anos após a sua criação, o gigante do entretenimento, contudo, celebra o marco em tom anticlimático: em 2023, a Disney teve perdas financeiras significativas em bilheteria de cinema, além de queda no fluxo de visitantes de seus parques e no número de assinantes da plataforma Disney+. Isso enquanto apertava os cintos para enxugar 5,5 bilhões de dólares de seus gastos anuais. Não bastassem tais dissabores, virou alvo do governador de extrema direita da Flórida, Ron DeSantis, que travou uma guerra ideológica e cultural contra Mickey e sua turma. Em seguida, a greve de roteiristas e atores em Hollywood atrasou projetos, criando um efeito dominó na agenda do estúdio.
Mas, se existe uma empresa que entende de montanhas-russas, é a Disney — e não só aquelas que atraem enormes filas de turistas em seus parques. Ao longo de sua história de altos e baixos, ela sobreviveu a duas terríveis recessões, uma guerra mundial e uma pandemia, fora fatores políticos e sociais que exigiram posicionamentos e mudanças dramáticas — renovações às quais a Disney se adequou com um sorriso no rosto e música melosa ao fundo, sem perder de vista o escapismo, sua matéria-prima essencial.
Nesse espírito, o cômico ratinho Mickey Mouse fez a Disney passar pela Grande Depressão, da década de 1930 — não apenas de forma simbólica, com suas aventuras cativantes, mas também financeiramente. O rato de orelhas redondas virou mina de ouro nas mãos do marqueteiro Kay Kamen, contratado por Walt em 1932: em menos de dois anos, Mickey fez mais de 30 milhões de dólares estampando de embalagem de doces a roupas, acessórios e material escolar — início da famigerada cultura de merchandising que hoje domina o setor. O lucro não só fez a Disney passar pela crise, como serviu de investimento para outra inovação: nasciam assim os filmes de animação. Branca de Neve e os Sete Anões foi o primeiro longa-metragem da história feito com desenhos coloridos e falas — antes, havia só experimentações no cinema mudo em preto e branco. O filme foi uma das muitas revoluções artísticas e mercadológicas inescapáveis inventadas pela Disney (veja o quadro).
Em retrospecto, os momentos de crise se revelaram prolíficos para a empresa. Nos anos 1940, em plena II Guerra, a Disney emprestou sua maior arma — a magia que conquista corações e mentes — à luta contra o nazismo, com direito a um feroz Pato Donald antagonizando Hitler. Na década seguinte, quando os Estados Unidos mostravam os primeiros sinais de recuperação após o conflito, Walt idealizou a Disneylândia. Começava ali a maior empreitada financeira da companhia, que prometia fazer do reduto na Califórnia o “lugar mais feliz na Terra”. Atualmente, a Disney ocupa os sete primeiros lugares do ranking de parques temáticos mais visitados do mundo, somando 100 milhões de pessoas por ano. Além de lucrativos, os resorts que recriam cenários de filmes e exploram seus personagens e narrativas em brinquedos retroalimentam a popularidade dos títulos da casa, num looping sem fim. Não à toa, o crescimento dos parques está diretamente ligado à variedade de universos da companhia — o que explica a voracidade da Disney por grifes do entretenimento, que levou à aquisição de marcas como Pixar, Marvel e Star Wars.
O jeito Disney de encantar os clientes
Em pronunciamento na semana passada, o CEO Bob Iger anunciou uma injeção de 60 bilhões de dólares nos parques nos próximos dez anos. A expectativa é de que boa parte desse investimento seja direcionada para o Disney World, em Orlando, na Flórida. Mas isso , claro, será afetado pelo cenário político por vir. De olho na eleição presidencial americana, DeSantis deve aumentar o cerco à empresa — a qual acusa de doutrinação liberal de crianças e de privilégios fiscais. Em resposta, a Disney processou o político.
Curiosamente, por décadas a Disney esteve do lado oposto do espectro político a quem DeSantis a acusa de favorecer. Walt era um cristão conservador que nunca se privou de retratar sua visão de mundo nos filmes. Sua contribuição ao soft power dos Estados Unidos é imensurável. O cenário começou a mudar recentemente, sob as pressões de uma sociedade hiperconectada, que deu vazão a movimentos como o feminismo e o antirracismo. Saem de cena as princesas loiras para dar espaço a garotas empoderadas de diferentes etnias e cores de pele — um exemplo foi a escolha de Halle Bailey para interpretar A Pequena Sereia. No ano passado, a animação Mundo Estranho se tornou a primeira do estúdio com um protagonista gay. Mais que posicionamento ideológico, a diversidade traz ganhos: uma das maiores bilheterias da casa é a de Pantera Negra, de 1,3 bilhão de dólares. Recentemente, o estúdio deu ao ator negro Anthony Mackie o uniforme do principal herói da Marvel, o Capitão América. Mudar é preciso — e a Disney conserva, assim, sua magia centenária.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861
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