As lives abrem nova fronteira para a indústria do entretenimento
Com artistas e público confinados em casa pela Covid-19, os shows ao vivo via YouTube e Instagram ganham fôlego
Quatro câmeras, uma equipe de dezoito pessoas e nenhum ensaio prévio foram suficientes para quebrar a internet. O show transmitido ao vivo pelo YouTube, ao longo de quatro horas, da dupla Jorge e Mateus, no sábado 4, somou 3,1 milhões de pessoas, que acessaram simultaneamente a plataforma. O público viu, cantou, chorou — e, evidentemente, postou! —, plugado no celular, tablet ou TV. Tratou-se da maior audiência da história de uma live. Para efeito de comparação, havia gente suficiente para lotar 39 estádios do Maracanã. Na avassaladora velocidade do mundo digital, quatro dias depois, na noite da quarta-feira 8, a cantora Marília Mendonça ultrapassou o recorde com seu repertório de sofrência sertaneja ao registrar 3,3 milhões de pessoas online.
Esse sucesso enorme é o sinal evidente de um fenômeno anabolizado pelo isolamento social, mas que seguirá em frente após a pandemia. As transmissões ao vivo, as lives, são a nova fronteira do entretenimento e da propaganda. Há uma extensa agenda de espetáculos previstos para as próximas semanas, e a indústria já começa a faturar em cima do negócio. Se por um lado a inviabilização das apresentações ao vivo paralisou totalmente a engrenagem do showbiz, por outro a população confinada em casa formou uma gigantesca plateia em potencial. “Existe uma alta demanda de artistas que querem entender como funcionam as lives”, diz Patricia Muratori, presidente do YouTube no Brasil. A busca pelo termo lives no Google aumentou 60% nas últimas semanas.
O Instagram também registra um surto desse tipo de transmissão, em assuntos que vão de shows e palestras a educação, saúde e culinária. Ao contrário das lives do YouTube, sem limite determinado, as do Instagram têm duração máxima de uma hora. “No Brasil, vimos a audiência da ferramenta Ao Vivo dobrar no último mês”, conta Gonzalo Arauz, diretor de Parcerias do Instagram para a América Latina. A empresária e influenciadora Camila Coutinho organizou há duas semanas um festival diário para abordar assuntos variados. Ela entrevistou figuras como a cantora Anitta e o advogado Ronaldo Lemos. “O confinamento tem como consequência uma digitalização da sociedade para além dos jovens da geração selfie”, diz Camila. “As lives viraram realidade para mais gente.”
Aos poucos, essa mesma realidade começa a despertar o interesse dos anunciantes. Os cliques e o tempo da audiência transformaram-se em ótimas plataformas para expor produtos e serviços. “As empresas querem fazer parte disso”, afirma Erh Ray, sócio da agência Betc/Havas, que tem as contas de clientes como Citroën e PepsiCo. Por aqui, Magalu e Rappi já investem nesse novo filão de mercado.
Além da reunião de multidões em torno do mesmo evento, as companhias perceberam que as transmissões ao vivo criam para os internautas a sensação de pertencer a uma comunidade. “Os amigos podem não sair para se encontrar, mas conseguem ver o mesmo show e postar sobre o assunto em suas redes sociais”, observa Ray. Enquanto alguns festejam a onda, o mercado de TVs abertas enxerga a novidade com preocupação, sobretudo em época de pandemia. Obrigadas a reprisar novelas antigas, as emissoras enfrentam agora a concorrência pela audiência de conteúdo exclusivo do YouTube e do Instagram.
Para os artistas, no entanto, de live em live é possível amenizar o impacto do cancelamento de seus shows. Exibida em 28 de março no YouTube, a transmissão de um espetáculo de Gusttavo Lima reuniu 700 000 pessoas simultaneamente. Nos serviços de streaming musical, os acessos às obras do artista andavam em baixa. Cinco dias depois da live, as audições das canções de Lima voltaram a crescer nesses canais. Ele também ganhou mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, atingindo a marca de 29 milhões e superando Wesley Safadão como o cantor com mais fãs nessa rede social no país. A live de Jorge e Mateus, aliás, arrecadou 1,1 milhão de reais, entre doações do público e de patrocinadores. A renda será revertida em prol de ações de combate ao coronavírus, embora os artistas tenham sido criticados por manter uma equipe nos bastidores sem o distanciamento social adequado. “Sentar-se ali, diante das câmeras, sem quase ninguém ao lado, a sensação é de que parece estar faltando algo. Mesmo assim, a emoção de ajudar o próximo e saber que fizemos tanta gente feliz é imensa. Esperamos que tudo isso passe logo”, afirma a dupla sertaneja. Como diz o velho ditado, o show não pode parar — agora, com estádios vazios e canais de internet lotados.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682