A 23ª Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo acontece no domingo, dia 23 de junho e, segundo o trio As Bahias e a Cozinha Mineira, precisa de uma “autocrítica”. O grupo, composto por Assucena Assucena, Raquel Virgínia e Rafael Acerbi — duas mulheres transgênero (pessoas que não se identificam com seu sexo de nascimento) e um homem cisgênero (que se identifica com seu sexo biológico) —, diz que o maior evento do tipo do mundo precisa dar mais visibilidade a artistas que são parte da comunidade LGBT+ e não a músicos de sucesso, como Anitta e Ivete Sangalo. “São artistas geniais, sou fã de todas, mas existem momentos para que certas figuras ganhem destaque”, diz Raquel.
Ivete e As Bahias e a Cozinha Mineira fazem parte da mesma gravadora, a Universal Brasil — é a primeira vez que o braço brasileiro da gigante do showbiz tem em seu elenco artistas transexuais. No dia 31 de maio, o trio lançou Tarântula, o seu terceiro álbum e o primeiro fora da cena independente. O nome é uma apologia à operação que exterminou pessoas transexuais durante a ditadura militar. Assucena, Raquel e Rafael falaram a VEJA:
Por que batizar um álbum com o nome de uma operação transfóbica? (Assucena) É a segunda vez na verdade que a gente faz isso. Nosso segundo álbum se chama Bixa, que sempre foi o pejorativo do que é ser travesti, do que é ser homossexual, do que é ser sapatão. É minorar ainda mais o indivíduo. Além da LGBTfobia, também tem o machismo intrínseco. A gente se apropria daquilo que antes era a nossa mácula, do que era nossa vergonha, e agora é nosso orgulho. Eu não tenho mais vergonha disso.
Falando de orgulho, o que é a Parada do Orgulho LGBT+ hoje? (Raquel) Eu tenho uma série de questionamentos a respeito de onde saem as decisões sobre quem vai ganhar o destaque. Mas eu acho também que é um lugar de festa, e o público LGBT tem o direito de escolher o seus ídolos. Não é obrigatório gostar de artistas LGBTs só porque você é LGBT, mas nesse caso específico eu acho que a gente precisa fazer um ponto de reflexão e autocrítica para saber a quem a gente está dando destaque num momento desse. Eu já fui muitas vezes na Parada, tinham artistas que eu admiro profundamente, mas que eu acho que não era o momento de o holofote estar neles.
Por exemplo? (Raquel) Por exemplo, Ivete Sangalo e Anitta. São artistas geniais, sou fã de todas, mas existem momentos e momentos para que certas figuras ganhem destaque.
Existem artistas e marcas que não estão necessariamente inseridos na comunidade, mas falam e investem no assunto. Como veem isso? (Raquel) Eu acho que marcas não são oportunistas. É óbvio que empresas querem lucro, a gente não pode perder isso de vista. Mas eu quero mais é que empresas que invistam na causa LGBT ganhem muito dinheiro com isso. Quanto mais lucro vier dessa causa, mais vão investir, e a causa vai se expandir, popularizar. Vai virar um debate onde mais pessoas têm acesso. Mesmo que uma marca fale assim: “Vou investir nelas, porque eu quero o público delas”. Tudo bem, é uma troca. Não tenho essa leitura de oportunismo. Acho que oportunismo é não dar um centavo à causa e querer ganhar com ela.
Pode dar um exemplo? (Raquel) Por exemplo, fazer uma campanha sobre pessoas trans sem pessoas trans. É diferente de você pegar pessoas trans e construir uma campanha com elas. Ser oportunista é quando, uma novela, por exemplo, diz que está debatendo questão trans, mas usa artistas cisgênero. Isso é ser oportunista, querer falar do assunto sem as pessoas do tema.
Eu acho que marcas não são oportunistas. Eu quero mais é que empresas que invistam na causa LGBT ganhem muito dinheiro com isso. Quanto mais lucro vier dessa causa, mais vão investir, e a causa vai se expandir, popularizar
Raquel Virgínia
Rafael, sendo um homem cisgênero, branco e heterossexual, já sofreu preconceito por estar junto de duas mulheres transexuais? (Rafael) Nunca sofri. Não sei o que é ser uma mulher travesti, mas sei exatamente o que é ser um homem branco e o que me cabe dentro dessa história.
Como é ser trans e viver de arte no Brasil? (Raquel) O mundo trans é desconhecido por grande parte da população mundial. A gente ainda não teve nem a oportunidade de se explicar, porque os espaços são muito pequenos. Qual artista trans você conhece de projeção nacional? As pessoas confundem Pabllo (Vittar), um homem branco, gay e cis, que tem uma personagem que se chama Pabllo Vittar. Mas quem são as personalidades trans que circulam nacionalmente e são populares? Não existe. A Roberta Close talvez seja a personagem mais icônica.
(Assucena) As pessoas trans sofreram por muito tempo com falta de credibilidade. Os espaços que nos eram dados eram os jocosos, não existia a oportunidade de trabalho. O que estamos representando é que podemos ser qualquer coisa: funkeiras, como a Linn da Quebrada, artistas de palco, como Liniker, ou MPB, como As Bahias. Nós sabemos que somos capazes, mas o mundo precisa entender que podemos ser muito mais. Ser trans não traz um deficit criativo ou estético. Ser artista em um país como o Brasil já é difícil, sendo trans, muito mais. A junção dessas duas coisas só dificulta. Ideia todo artista tem, a dificuldade é colocar em prática. Você precisa de uma pessoa que realize seu projeto. Participei de festivais que impulsionaram a minha arte com base em uma lei. Em um país de dimensões continentais, a cultura deveria ser vista como investimento, não como gasto.
Já usaram a Lei Rouanet? (Raquel) A gente não usou diretamente, mas acho que a gente participou de muitos festivais que usaram. A lei nos beneficiou indiretamente.
Como foi a transição da carreira independente para uma gravadora como Universal? (Assucena) Sempre quis expandir os nossos horizontes. Dentro da cena independente, tem um lugar que você chega e não consegue ampliar. Não tenho dinheiro para pôr em rádio, a gravadora tem. Não tenho dinheiro para veicular a minha arte no Brasil como a gravadora tem. Acho que as gravadoras não morreram, elas não estão perto de morrer, elas estão se reinventando, e muito bem.
De onde vem a principal renda do grupo? São shows, vendas de discos? (Assucena) A principal renda é de shows. Eles são a medula óssea da carreira de um artista. Mas ao entrar em uma gravadora temos mais opções, como a publicidade ou influência digital. Quando estamos em alta temporada, no lançamento de um disco, a gente faz uma média de 8 a 12 shows por mês. Em baixa temporada, fazemos por volta de 4 a 5 por mês, pelo menos um por semana.