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Artigo: “Elza Soares cantava sobre um país cuja voz não é ouvida”

O autor e roteirista Stefano Volp escreve para VEJA sobre o legado da cantora que morreu ontem, aos 91 anos, para a afirmação negra e feminina

Por Stefano Volp
Atualizado em 21 jan 2022, 10h45 - Publicado em 21 jan 2022, 09h42
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  • A mulher do fim do mundo cantou até o fim. O rasgado de sua voz única afrontava a tristeza, sacudia as estruturas de um país díspar, gritava por socorro e, ao mesmo tempo, convocava os seus para a guerra. Poucos contribuíram para a cultura brasileira, sobretudo a negra, da forma como ela contribuiu. Onde quer que esteja, que escute um “salve” dos seus.

    Viver por mais de 90 anos não é uma estimativa comum entre a comunidade negra no Brasil. Tampouco eternizar-se na história da música diante de tantas consternações. Elza Soares marcou por onde passou. O bom humor, o riso forte, uma disposição visceral para o trabalho e a vontade de continuar vivendo sem parar de tecer seu legado.

    Para além de deixar marcas, ela também as carregava. “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim / Cadê meu celular? / Eu vou ligar pro 180 / Vou entregar teu nome / Aqui você não entra mais” é uma das canções de disco que não apenas fala dela, mas também representa seu renascimento, como muitas vezes ela o fez. Ao colocar na boca de muitos que “Deus é uma mulher preta”, ela provava que sabia como zombar das adversidades da vida com os dois pés no chão e o microfone a centímetros da boca.

    A força de sua poesia residia num lugar que a elite é incapaz de acessar. Um espaço conhecido pela gente preta, construído por lembranças difíceis, erguido pela força da superação, cimentado e calcado pelo talento, como muitos de nós temos e somos e vamos. A mulher capaz de se regenerar, ardente e deslumbrante feito uma fênix, falava de si mesma, cantava sua vida e, assim, cantava sobre a parte do país cuja voz não é ouvida.

    Elza foi uma mulher de esperança, de resistência. Sua capacidade intelectual não morava na academia. Revolucionária antes de todas as pautas do hoje, ela desenvolvia sua leitura da realidade, posicionando-se contra o racismo, as desigualdades sociais, a violência contra a mulher, o preconceito contra as minorias marginalizadas. Guardava no timbre uma ponta de lança capaz de afrontar quem se opusesse ao seu caminho. Sambava sorrindo, mas também sabia fazer samba pra chorar, nutrir e fazer pensar. Pelo legado de força, resistência e muita alegria deixado a cada de um de nós, mulher do fim do mundo não sucumbiu. A mulher do fim do mundo cantou até o fim.

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    Stefano Volp é roteirista, tradutor, escritor e jornalista, fundador da editora Escureceu e autor, entre outros, de Homens Pretos (Não) Choram

     

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