No fim dos anos 90, professores de um colégio público no subúrbio de Brasília encaminharam um adolescente de origem humilde para a Sala de Recursos Multifuncionais — serviço de apoio para alunos com alguma condição especial ou identificados como superdotados. No caso do estudante Antonio Leonardo, então aos 16 anos, a razão de estar ali era clara: o jovem exibia um dom notável para o desenho. Filho de um entregador de gás e de uma dona de casa que cozinhava para fora na carente Ceilândia, ele tremeu quando apresentado à pintura. “Eu tinha medo da tinta”, relembrou a VEJA. A ironia desse contato inicial com os pincéis não é pequena. Hoje aos 39 anos, Antonio Obá — pseudônimo que significa rei, em iorubá — é, de modo indisputável, um dos maiores talentos surgidos na arte nacional neste século XXI. Povoadas por visões poéticas de sua ancestralidade negra, as telas de Obá causam impacto desconcertante, como atesta a mostra Revoada, que entra em cartaz na Pina Contemporânea, em São Paulo, a partir de sábado, 24.
Na instalação que dá nome à mostra, Obá preenche o espaço da recém-inaugurada expansão da Pinacoteca com 180 esculturas em forma de mãos entrelaçadas que simulam um voo rumo aos céus. Elas foram moldadas a partir das mãos de crianças reais, em oficinas realizadas em escolas — forma de o artista enfatizar seu apreço pela educação. Além da chance de ouro que obteve no colégio da periferia de Brasília, ele se converteu em professor da rede pública local após cursar artes na universidade. “Lecionei por vinte anos, e não tem como você apagar essa experiência de peso muito relevante. As mãos que a escola constrói são tentáculos transformadores do mundo”, afirma o artista.
Curiosamente, só no ano passado Obá deixou o magistério para viver de vez de seu trabalho. Àquela altura, sua valorização impressionante no mercado de arte já estava mais que consolidada. Seus quadros de grandes dimensões estão nas maiores coleções do Brasil e do mundo. Uma de suas obras figura no imponente acervo do bilionário francês François Pinault, dono de marcas como Yves Saint Laurent e Gucci, na Bourse de Commerce de Paris. No fim de 2022, fez sucesso em Nova York com uma mostra individual na sede da Mendes Wood DM, galeria que o representa lá e aqui. “Já faz algum tempo que as telas de Obá são vendidas acima de 1 milhão de reais. E a oferta é bem menor que a demanda: se você ganhar na loteria e quiser comprar uma, vai ter dificuldades”, diz Jones Bergamin, um dos marchands mais respeitados do país.
Uma razão inegável do sucesso de Obá é que seu trabalho está em sintonia com o espírito identitário atual. “Desde os anos 90, uma das tônicas da arte feita no Brasil está em revisitar narrativas históricas”, escreve o curador Yuri Quevedo no catálogo da exposição. “Artistas negros, como Antonio Obá, têm capitaneado esse movimento.” O próprio não nega a importância dessa pauta — mas frisa que suas inspirações vão muito além do ativismo. Com razão: seus personagens negros se inserem em cenas cuja potência visual transcende a questão racial. “Meu trabalho é autorreferente, mas busco enfatizar a experiência humana que irmana a todos nós”, diz.
A pintura de Obá explodiu de fato após ele passar quatro meses na Europa, em 2017. Lá, viu de perto as obras-primas dos grandes museus. “Foi de chorar”, admite. As lições transbordam em telas como a onírica Angelus, que retrata um homem sob uma árvore dourada e crianças pairando acima de uma fogueira. Ou Fata Morgana, em que outra criança salta numa piscina e encara o reflexo de seu corpo na água. Em cada detalhe se vê história da arte, de Chagall a Bacon. Mas o que se impõe, sobretudo, são as mãos originais do menino que voou alto.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846
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