Relâmpago: Digital Completo a partir R$ 5,99

A vida imaginária dos monstros

'A Literatura Nazista na América', do chileno Roberto Bolaño, é um mosaico satírico de almas doentes e desejos totalitários

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 4 jun 2024, 16h35 - Publicado em 12 abr 2019, 07h00

Nascida em Berlim, mas filha de argentinos, a escritora Luz Mendiluce (1928-1976) foi uma das personagens mais perturbadoras na literatura latino-americana do século XX. Poetisa precoce e crítica venenosa, tornou-se uma papisa da vanguarda literária portenha; além disso, era nazista e filha de nazistas. Em 1929, na Alemanha, sua mãe apresentou-a a Adolf Hitler, que a pegou no colo e comentou: “É sem dúvida uma menina maravilhosa”. O momento foi registrado numa foto, que Luz guardaria por toda a vida, em moldura de prata lavrada. Após dois casamentos infelizes, mergulhada no alcoolismo e no desespero, ela continuaria a revisitar aquele instante em sonhos e devaneios, sentindo os braços fortes do genocida “e sua respiração cálida por cima da cabeça”. O encontro serviu de tema a um de seus poemas mais famosos: Com Hitler Fui Feliz, publicado na coletânea Tangos de Buenos Aires, de 1953.

A literatura nazista na América
A LITERATURA NAZISTA NA AMÉRICA – De Roberto Bolaño (tradução de Rosa Freire d’Aguiar; Companhia das Letras; 54,90 reais e 34,90 reais na versão digital) (//Divulgação)

Todas as informações contidas no parágrafo acima — datas, fatos, títulos — são imaginárias; mas o leitor há de encontrá-las em parágrafos de sabor enciclopédico no estranho e fascinante A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Romance de formato sui generis, a obra também pode ser lida como uma série de contos interligados. Os falsos verbetes cobrem vida e obra de 31 literatos nascidos ou radicados em países do continente americano, da Argentina aos Estados Unidos — todos seduzidos, em diferentes medidas, pelo canto da sereia fascista (ou suas congêneres). As notícias biográficas — que se estendem de 1880 a 2029 — vêm misturadas a sinopses literárias que Bolaño compõe com humor vertiginoso e imaginação selvagem.

Nascido no Chile em 1953, Roberto Bolaño viveu também no México e na Espanha, onde passou décadas escrevendo na obscuridade. Encontrou a fama tardiamente e desfrutou-a por pouco tempo. A Literatura Nazista na América, publicado pela primeira vez em 1996, foi o livro que o revelou à crítica e ao público. Bolaño sucumbiu às complicações de uma hepatite apenas sete anos depois — e a morte precoce acrescentou camadas suplementares de mistério a uma obra marcada por ironias às vezes indecifráveis.

Obra-prima da sátira, A Literatura Nazista na América também ocupa um lugar peculiar em dois gêneros irmãos: o da biografia fantasiosa e o da resenha inventada. Em suas Vidas Imaginárias, o francês Marcel Schwob (1867-1905) compôs desventuras exemplares para personagens históricos obscuros, misturando-os a criaturas de sua própria lavra. Já Jorge Luis Borges, em textos como A Aproximação a Almotásim e Pierre Menard, Autor do Quixote, aperfeiçoou a arte de analisar autores jamais nascidos e livros que ninguém escreveu. Vale recordar ainda outro possível ancestral à obra de Bolaño: Doskonala Pró`znia (“Vazio Perfeito”, sem tradução no Brasil), coletânea de resenhas de livros inexistentes, publicada em 1971 pelo polonês Stanislaw Lem, autor de Solaris e outros clássicos da ficção científica.

Continua após a publicidade

Em sua coleção de vidas medonhas, Bolaño pinta um bestiário de criaturas ora patéticas, ora hediondas, que praticam a literatura como forma de patologia. Alguns de seus personagens são camaleões amorais, para quem o extremismo ideológico é uma nuança de ocasião — como Max Mirebalais, farsante haitiano que ganha fama plagiando poetas franceses e elabora uma mescla de negritude e arianismo. Outros parecem cair no fanatismo por confusão mental: é o caso de Irma Carrasco, mexicana ultrarreligiosa que apanha do marido stalinista e se junta à falange de Franco. Há também genuínos ideólogos — como o carioca Luiz Fontaine da Souza, filósofo anti-iluminista que produz refutações copiosas de Voltaire, Rousseau, Montaigne, Montesquieu e Hegel. O Brasil tem ainda outro representante na teratologia de Bolaño: Amado Couto, natural de Juiz de Fora, que frequenta grupos de extermínio, odeia os irmãos Campos, expoentes da poesia concreta, e pretende escrever o grande romance policial brasileiro. Sofre de uma estranha obsessão por esqueletos e por Rubem Fonseca — a quem planeja, sem sucesso, sequestrar.

O trecho mais célebre de A Literatura Nazista na América é o capítulo final, dedicado à vida do “infame Ramíres Hoffman” — o único monstro absoluto nessa galeria de horrores oblíquos. Aviador, serial killer e artista performático, Hoffman trabalha por um tempo para a ditadura de Pinochet e escreve versos herméticos nos céus de Santiago com a fumaça de seu avião; após diversos assassinatos, que celebra em ensaios fotográficos, acaba fugindo para a Europa. As últimas páginas do livro acompanham uma espécie de investigação policial-literária sobre o paradeiro do assassino — empreitada em que o próprio Bolaño aparece como detetive acidental. Um dos momentos mais intrigantes do livro é o breve encontro entre o autor e seu horrível personagem — que voltaria a aparecer, sob o nome de Carlos Wieder, no romance Estrela Distante, escrito logo após A Literatura Nazista na América.

Além da evidente paródia política, a obra de Roberto Bolaño tem a virtude de multiplicar imagens grotescas que ao mesmo tempo fascinam e apavoram o leitor — especialmente nas falsas resenhas, em que laconismo e extravagância se combinam à perfeição. Exemplo disso é certo poema surrealista de autoria de outro falso literato do livro, o chileno González Carrera, no qual vemos homens de armadura, “merovíngios de outro planeta”, andando por intermináveis corredores de madeira, e “mulheres louras dormindo ao relento perto de riachos de água podre”. Ao produzir essa intimidade veemente com almas doentias, A Literatura Nazista na América alcança um triunfo inquietante e inesquecível: conferir aos leitores um vislumbre verossímil do inferno.

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 17 de abril de 2019, edição nº 2630

Continua após a publicidade
carta
Envie sua mensagem para a seção de cartas de VEJA
Continua após a publicidade

Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 5,99/mês
DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.