A tocante despedida de Ana Michelle Soares em último livro sobre finitude
Jornalista conviveu por 12 anos com o câncer e ajudou a desmistificar os cuidados paliativos
“Não sou invisível. Tenho um câncer terminal, mas não estou no leito de morte”, disse a jornalista Ana Michelle Soares — ou AnaMi, como gostava de ser chamada — em uma entrevista a VEJA em 2019. “O que quero dizer é que existe muita vida entre o diagnóstico de uma doença terminal e a morte”, completou. E assim o fez: entre a descoberta do câncer de mama em 2011, aos 28 anos, até sua morte em 21 de janeiro deste ano, aos 40, AnaMi viveu o mais plenamente que pôde. Com o auxílio dos cuidados paliativos — tabu que ajudou a desmistificar através de seus projetos — e de uma rede de apoio amorosa, a jornalista viajou pelo mundo, realizou uma extensa lista de desejos, organizou manuais sobre o câncer de mama e uma cartilha de boas práticas para a imprensa, além de escrever três livros sobre sua jornada. O último deles, Entre a lucidez e a esperança, publicado recentemente pela Sextante, chegou aos leitores como uma despedida calorosa e consoladora, um adeus corajoso de AnaMi.
A elaboração de seu último livro foi encarada com alegria e determinação, mesmo diante das dificuldades. Sentindo urgência, Ana Michelle escreveu mais da metade do texto no hospital, por vezes com exaustão e tremor nas mãos, efeitos colaterais do tratamento. Quando a metástase se agravou, em 2022, ela já convivia com a doença há mais de uma década. Lesões no cérebro levaram à radioterapia e internações. Ela morreu poucos dias depois de sua última reunião para acertar ajustes com a editora Sibelle Pedral, que assina o posfácio do livro. “Li alguns trechos em voz alta, para ver se estavam do jeito que ela queria. Sugeri trocar palavras e completar ideias. Se o corpo estava debilitado, a mente estava afiada. As soluções para os dilemas de texto vinham rápidas, certeiras. AnaMi ia se empolgando”, narra Sibelle.
Entre a lucidez e a esperança traz o humor ácido característico da autora, com reflexões, narrativas pessoais e uma série de indicações e lembretes para ajudar aqueles que convivem com a terminalidade, desde o próprio paciente até os parentes e amigos enlutados. Em seus trabalhos, AnaMi desnudava, sobretudo, a realidade inevitável da finitude. Ressaltava que as histórias sobre a cura não eram as únicas que mereciam espaço — e aconselhava aos colegas de profissão que a doença não deve ser tratada como uma “batalha” a ser perdida ou conquistada. Sem rodeios, lembrava: todos vamos morrer um dia, afinal. O legado de AnaMi foi homenageado recentemente em Vai na Fé, novela das 7 da Globo:
“Falei tanto sobre vida e morte, sobre viver o presente, sobre legado, que não me parecia correto sair à francesa e deixar o leitor no vácuo. Então a gente já combina aqui: nesta história a menina não morre no final. Ela vive: nas palavras. E isso basta”. Foi assim que se despediu AnaMi, cheia de vontade de viver.