Os jogos de tabuleiro ganharam impulso durante o confinamento forçado pela pandemia, e o que era uma tendência no primeiro semestre avançou de forma avassaladora nas últimas semanas. É verdade que um desses jogos, o xadrez, já gozou de mais popularidade, em decorrência dos confrontos históricos de Bobby Fischer com Tigran Petrosian e Boris Spassky, do embate do século passado entre Garry Kasparov e o supercomputador Deep Blue e da façanha do brasileiro Mequinho, que chegou à terceira posição no ranking mundial em 1977. Graças à série O Gambito da Rainha, mais novo sucesso da Netflix, o esporte milenar que Goethe, um dos maiores gênios da literatura alemã, definiu como sendo “a ginástica da inteligência” está de novo conquistando corações e, principalmente, mentes.
O Gambito narra a trajetória fictícia da americana Beth Harmon (interpretada por Anya Taylor-Joy), uma garota sem família que aprende a jogar xadrez com o zelador do orfanato e segue uma trajetória vitoriosa enquanto lida com os próprios traumas. A trama fascinante, passada nos tempos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, tornou-se um fenômeno mundial, visto por 62 milhões de contas em apenas 28 dias, um recorde para a Netflix.
As buscas no Google por termos relacionados — “como jogar xadrez”, por exemplo — mais que dobraram em novembro. A palavra “gambito”, que se refere ao movimento no qual um peão é sacrificado, foi uma das mais procuradas. O aumento do interesse se reflete também no mercado. Na Ri Happy, líder no varejo de brinquedos, as vendas de itens de xadrez cresceram 200% em novembro em relação ao mesmo mês do ano passado. “Não era uma categoria que fazia tanto sucesso entre crianças e adultos e, com certeza, esse aumento está relacionado à série”, diz Sandra Haddad, diretora comercial da empresa.
A loja especializada J’adoube registrou o crescimento de 114% no número de pedidos e 103% nas receitas a partir de outubro, quando a série estreou. Já o site Chess.com, referência entre as plataformas do jogo on-line, viu sua audiência quintuplicar. “Só no último domingo, 5 000 brasileiros se registraram”, diz Krikor Mekhitarian, quarto colocado no ranking nacional de xadrez e diretor de conteúdo do Chess.com, que tem 1,2 milhão de brasileiros inscritos. O livro The Queen’s Gambit, de Walter Tevis, que inspirou a série, retornou à lista de mais vendidos do jornal The New York Times 37 anos após o lançamento.
A série dirigida por Scott Frank teve a consultoria de lendas como Kasparov, o russo que ganhou e perdeu do Deep Blue, e recebe elogios mundo afora por seu tratamento impecável. Com sete episódios de cerca de 45 minutos cada um, hipnotiza até quem jamais se viu diante de reis, rainhas, bispos e torres. “Geralmente, histórias sobre xadrez são muito fictícias ou muito técnicas, afastando quem entende muito ou quem não sabe nada”, diz Luis Paulo Supi, um dos catorze brasileiros que detêm o título vitalício de grande mestre oferecido pela federação internacional. “Essa série alcançou o equilíbrio perfeito, tudo faz sentido, e por isso acabou agradando a todos os públicos”, completa o enxadrista de 24 anos que, em junho, ganhou fama ao superar, em um amistoso on-line, o norueguês Magnus Carlsen, quatro vezes campeão mundial e atual número 1 do ranking.
Juliana Terao, hexacampeã brasileira, também rasga elogios à série, mas faz uma ressalva. Segundo ela, por mais genial que Beth Harmon fosse, soa absolutamente utópico o xeque-mate dado no machismo, sobretudo naquele período histórico. “Ficou muito leve, pois ela era uma mulher que ninguém conhecia e que conseguiu entrar na elite do xadrez de uma forma muito fácil, sendo bem recepcionada. Nem hoje é assim, imagine na década de 60”, diz Juliana, de 29 anos, que aprendeu a jogar com o pai e o irmão e se acostumou a ser a única mulher em seus primeiros campeonatos.
Torneios de xadrez são basicamente divididos em duas categorias: absoluta, na qual tanto mulheres como homens podem se inscrever, e feminina, exclusiva para elas. Estima-se que 15% dos competidores sejam mulheres. Para as que estão começando a praticar o esporte da mente, é importante encarar qualquer desafio, como faria Beth Harmon. E xeque-mate!
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715