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A redenção cristã de ‘Harry Potter’

Vertentes religiosas vêm combatendo a visão de que a saga promove o “ocultismo”

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 15 Maio 2020, 13h58 - Publicado em 15 Maio 2020, 06h00
FEITIÇO - Família cultua Potter nos EUA: temas caros à teologia (Eric Charbonneau/Shutterstock)

Desde que o feitiço de J. R. Rowling foi lançado, poucos foram os inimigos a se interpor entre Harry Potter e seu público ávido por magia. Pois foram justamente as habilidades do bruxo que o colocaram em rota de colisão com católicos e evangélicos – cujas fileiras mais fundamentalistas acusaram a saga de promover o “ocultismo” entre seus rebentos. O duelo entre Rowling – cristã assumida – e os religiosos contou com a participação do falecido exorcista-chefe do Vaticano, padre Gabriele Amorth, que conferiu à franquia o epíteto de “satânica”. Para os evangélicos americanos, os poderes de Potter eram o bastante para desafiar até mesmo o sacratíssimo princípio do Estado laico porque, uma vez difundidos nos currículos de escolas primárias, estariam incentivando a adesão a seitas esotéricas. Como se uma criança alfabetizada não fosse capaz de descobrir por si mesma que sangue de unicórnio não traz ninguém de volta à vida porque, afinal…

Vale lembrar que a preocupação da Igreja Católica e, posteriormente, das diversas vertentes protestantes com tudo o que cheira a paganismo não é nova (que o diga a Idade Média). Ocorre que, até hoje, grupos de origem carismática e neopentecostal continuam em guerra contra o bruxinho. Blogs, podcasts e devocionais que relacionam elementos da cultura pop com os ensinamentos de Cristo relativizam até mesmo as cenas de sangue e sexo explícitas de Game of Thrones; mas fogem de Harry Potter como o diabo foge da cruz para evitar a polêmica. A razão da implicância tem raízes históricas: forjados na fé popular, pouco letrada e profundamente atada ao misticismo, estes grupos tendem a supervalorizar as possíveis “influências maléficas” na arte secular, bem como a suscetibilidade dos pequenos às famigeradas “mensagens subliminares”.

Felizmente, vertentes pensantes das religiões vêm combatendo essa visão obscurantista. Apesar de ter sido alvo de comentários reticentes do papa Bento XVI, a história sofrida de Potter foi alvo de análises elogiosas na revista Communio, fundada pelo próprio Pontífice emérito. Grupos de estudo evangélicos nos Estados Unidos também atuam para redimir o bruxo. Credite-se a este processo a popularização do trabalho de cristãos da estirpe de G. K. Chesterton, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, ferrenhos defensores das “histórias de fada” como educadoras da imaginação. Chesterton, o pai do padre Brown (um Sherlock Holmes de batina muito querido na literatura britânica), ensinava, por exemplo, que “contos de fada não ensinam que dragões são reais, mas que podem ser vencidos”. “Ele ficou esquecido por décadas e, desde que voltou às rodas de conversa, voltamos a dar o devido crédito à capacidade imaginativa das crianças”, explica o crítico Alex Catharino. “O ambiente mágico, no fim das contas, só serve para fazer girar as engrenagens da narrativa. O que fica mesmo é a história”, defende.

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Um olhar atento, afinal, revela que a saga de Potter está profundamente ancorada em temas caros à teologia cristã como o dilema livre-arbítrio, latente nas diversas vezes em que o protagonista se percebe semelhante ao vilão, e o poder do sacrifício que, lembrarão os leitores, dá início a toda a trama do “menino que sobreviveu” a uma maldição graças à entrega da mãe. A certeza da finitude, aliás, talvez seja o assunto mais complexo e recorrente da saga, cujo supremo mal é encarnado por um personagem que, literalmente, esfacelou a própria alma para evitar o destino certo e comum à humanidade, mágica ou não. Aos críticos, parece passar despercebido o trecho bíblico sorrateiramente inserido pela autora na lápide dos pais do bruxo: “O último inimigo a ser derrotado é a morte”.

Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687

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