“Bem-vindos ao planeta dela.” A introdução feita por uma voz robótica abriu caminho para Doja Cat pisar pela primeira vez no palco do Grammy, em março de 2021. Aos 25 anos e com três indicações ao prêmio, a americana que é o novo fenômeno feminino do hip-hop evidenciou ali a fórmula do seu sucesso. Com uma combinação de voz macia, letras de duplo sentido e melodias psicodélicas, Doja — nome artístico de Amala Zandile Dlamini — hipnotizou o público na pele de um robô sexy enquanto entoava o hit Say So, faixa romântica (e picante) que viralizou no TikTok. Em constante flerte com pirações cósmicas e a tecnologia em seus clipes e shows, a rapper já vestiu figurinos de androide, deusa imortal e alienígenas coloridas — como uma ET cor-de-rosa gigante no vídeo de Kiss Me More. A faixa integra seu terceiro e recém-lançado disco, Planet Her, e já soma mais de 430 milhões de reproduções no Spotify. As referências advindas da ficção científica, somadas às experiências místicas da cantora, põem Doja Cat na linha de frente de uma colorida e popular safra de novas cantoras: as musas afrofuturistas.
O movimento artístico conhecido como afrofuturismo foi criado por artistas negros nos anos 60, como uma estética de “resistência” para enaltecer as raízes africanas sob uma perspectiva arrojada e high-tech. A tendência voltou aos holofotes com o estouro do filme Pantera Negra (2018) e sua representação de uma cidade africana futurista. O empurrão decisivo veio com a adesão de Beyoncé, em seu disco-visual Black Is King (2020). Naquela ode a outro sucesso da Disney, O Rei Leão, Beyoncé abusa de cores metálicas, peles de animais e coreografias robóticas misturadas a danças tribais africanas. Assim, lançava as bases de um afrofuturismo com a cara do século XXI.
Quando surgiu, a mescla de elementos do passado da cultura africana com vislumbres do porvir prometido pela tecnologia era uma resposta irônica à baixa representação dos negros na ficção científica nos anos 60 e 70. De caráter meio alternativo, abarcava do cinema e da literatura às artes visuais (o nome afrofuturismo, em si, só seria cunhado em 1993 pelo crítico cultural americano Mark Dery). Se agora a tendência é elevada a um alcance inédito, isso se deve a uma razão escancarada nos vídeos de Beyoncé: o afrofuturismo foi reinventado para ser um símbolo do empoderamento feminino no pop.
A fila de artistas que abraçaram sua filosofia é crescente. Além de Doja Cat, que transborda na mesma medida sensualidade e visuais siderais, reforçam o pacote nomes que ganharam status de cult, caso da estrela pop Janelle Monáe, 35 anos, com suas letras políticas e sobre autonomia feminina, e Dawn Richard, 37, que bebe do visual dos quadrinhos e adiciona ao requintado soul de Nova Orleans uma envolvente batida eletrônica. Outras adeptas carregam a fama de “esquisitonas”, como a inglesa FKA Twigs, 33, que segue um subgênero batizado de “afrossurrealismo”. Já a novíssima Willow Smith, 20, que é filha do ator Will Smith, exibe visual andrógino e flerta com o punk rock. Em comum, todas elas não só se apropriam da estética futurista como exaltam o direito à liberdade da mulher. Doja Cat, aliás, explica que o título do disco Planet Her diz respeito a um planeta onde impera o “divino feminino”. “Lá eu faço o que eu bem quiser”, disse a musa soltinha.
Com seu apelo à ficção científica, o afrofuturismo se revela uma válvula de escape para fugir da opressão social e do racismo, além de propiciar formas alegóricas de voltar ao passado para confrontar os grilhões da escravidão. “É possível associar uma abdução alienígena ao assombro de ter sido traficado da África”, viaja alto a cineasta e pesquisadora americana Ytasha Womack, autora do livro Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture (sem tradução no Brasil). Womack lembra que, no século XVII, antes de a escravidão ser institucionalizada nos Estados Unidos, negros e estrangeiros não europeus eram chamados de “aliens” no país. “Essas pessoas não tinham direitos, pois não eram vistas como humanas”, explica a pesquisadora. Em 2022, ela será curadora de um evento especial sobre afrofuturismo no Carnegie Hall, em Nova York.
Na ocasião, serão celebrados os pioneiros do movimento. Caso de Sun Ra (1914-1993), jazzista performático americano que ganhou notoriedade nos anos 70 ao criar para si uma persona psicodélica inspirada no Egito Antigo e na exploração espacial. Na mesma época, Samuel R. Delany, hoje aos 79 anos, se consagrava como o primeiro grande autor negro da literatura sci-fi — trilha seguida, na década seguinte, por Octavia Butler (1947-2006), que receberia o título de “dama da ficção científica”. Também precursora do afrofuturismo, ela denunciava em seus livros o racismo ao lado de elementos como viagens no tempo e seres fantásticos. “Eu escrevia em busca de mundos melhores”, afirmou a autora, criada à sombra da luta pelos direitos civis americanos. Desde então, a corrente se manifestou como inspiração para artistas negros de várias épocas. Artistas plásticos renomados beberam do afrofuturismo, como Jean-Michel Basquiat (1960-1988) e Ellen Gallagher — enquanto hoje jovens negros usam telas virtuais, como o Tumblr e o Instagram, para publicar suas obras carregadas de cores e surrealismo.
Na música, curiosamente, os homens dominaram o afrofuturismo original, com nomes como George Clinton e seu Parliament/Funkadelic. Foi necessário o salto alto da modelo e cantora jamaicana Grace Jones abrir caminho para a exuberância feminina nos anos 70 e 80, com seu visual robótico desenhado por Jean Paul Gaultier e canções entre a new wave e a disco music. Em paralelo, coube à divindade do jazz Alice Coltrane (1937-2007) aprofundar o flerte do afrofuturismo com a espiritualidade. Na condição de guru de uma comunidade alternativa na Califórnia, Alice acabou fazendo a ponte entre as antigas e as novas musas do ramo: Doja Cat viveu no local na infância e captou bem sua doutrina mezzo hinduísta, mezzo cósmica. Exemplo: ela só gosta de compor quando voa de avião. “Me inspira o infinito”, diz. Para as estrelas afrofuturistas, o céu não é o limite.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747
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