Semanas atrás, um estranho ritual foi transmitido pela internet. A câmera flagrava um apresentador mascarado ao lado da obra Morons (White), criada por um dos artistas mais incensados da atualidade, o inglês Banksy. Emissário da empresa de tecnologia Injective Protocol, o rapaz informou, em tom solene, que estava prestes a perpetrar o que muitos veriam como loucura: a destruição ao vivo de um autêntico Banksy. Terrorismo? Intolerância? Golpe de marketing? O objetivo era mais audacioso. Após arder em fogo, a gravura passou a existir apenas em versão virtual — ou seja, como imagem para guardar no PC ou smartphone. O lance incendiário valeu a pena. Se o original em papel fora comprado por 95 000 dólares, seu avatar no prosaico formato de JPG acabou revendido pelo quádruplo, 382 336 dólares. Passou a ser, ele próprio, um original indisputável.
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A transubstanciação de uma obra material em mero arquivo de computador atesta: a arte digital, gênero visto por anos só como uma curiosidade promissora, enfim alcançou a maioridade. Dias depois da queima do Banksy, um exemplo ainda mais retumbante assombrou o mercado. A colagem Everydays: The First 5 000 Days, do artista Mike Winkelmann, o Beeple, foi vendida num leilão da tradicionalíssima Christie’s por 69 milhões de dólares, transformando-se na obra digital mais valorizada até hoje (e a terceira mais cara de qualquer artista vivo). O trabalho é um mosaico das milhares de imagens publicadas na internet desde 2007 por Beeple. Sinal dos tempos, o “grande artista” da era digital, com seus óculos fundo de garrafa e visual caretinha, tem mais cara de nerd que de enfant terrible dos pincéis.
A ascensão do negócio mexe com uma experiência decantada por séculos: a apreciação da arte. Obviamente, quadros e esculturas continuarão a fascinar as pessoas nos museus. As peças em forma de arquivos virtuais, contudo, traduzem uma mudança profunda. Se a internet já é o ambiente da comunicação, trabalho e lazer de milhões de pessoas, por que não também das artes? Assim, as ilustrações digitais se transformaram em artigos disputados, motivando uma verdadeira corrida ao ouro. Mas, se uma imagem pode ser replicada ad infinitum nas redes, o dilema é como garantir que uma única versão dela seja a original de fato. O pulo do gato que agora permite uma atribuição de autenticidade com segurança é o NFT, tecnologia de certificação similar à utilizada em moedas virtuais.
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O que o novo (e ainda desconhecido) dono da obra de Beeple comprou não foi só um arquivo de computador, mas um certificado NFT que diz que aquela imagem é dele. Para o artista, há uma vantagem notável: a nova tecnologia permite ganhar uma porcentagem a cada revenda. No mundo das artes, quando algo é negociado, o vendedor ganha só pela primeira venda — e as obras normalmente multiplicam seu valor mais adiante, ao passar para outras mãos. Se uma criação convencional for revendida por milhões de dólares, o dinheiro vai para o vendedor, e não para o artista. Agora, com o NFT, é possível incluir uma cláusula para que cada revenda reverta numa porcentagem a seu criador. “Temos de separar dois conceitos: um é a apreciação da arte, que não tem nada a ver com a propriedade dela. O conceito de propriedade envolve o fator especulativo, que é importante para dar valor a objetos e coisas”, explica o curador e especialista Marcello Dantas.
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Para além das obras de arte, o NFT pode ser associado a qualquer item digital. A banda Kings of Leon vendeu uma série de seu novo álbum para colecionadores por 2 milhões de dólares. A cantora Grimes, mulher de Elon Musk, leiloou vídeos produzidos por ela por cerca de 6 milhões de dólares. Até um gif tosco, do famigerado Nyan Cat, foi negociado por 600 000 dólares. A revolução digital mudou a arte. Mas não precisava ir tão longe.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731
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