Em 1842, uma impressão de A Grande Onda de Kanagawa, icônica xilogravura do japonês Katsushika Hokusai (1760-1849), custava 16 mons, que na época compravam dois feixes de macarrão. Quase 200 anos depois, um exemplar medindo apenas 25,1 por 37,1 centímetros alcançou, em um leilão da Christie’s de Nova York, o impressionante valor de 2,8 milhões de dólares, suficientes para adquirir um imóvel de luxo ou um jato de pequeno porte. A cifra ficou muito acima da previsão de venda, que girava entre 500 000 e 700 000 dólares, valores também nada desprezíveis. Acontece que, ao se engajarem em uma verdadeira batalha pela obra, seis interessados demoraram justos treze minutos para disparar o preço às alturas das vagas retratadas na imagem. O vencedor da disputa deu o lance final por telefone, mas desejou permanecer anônimo, como é de praxe nessas negociações.
Intitulada em japonês Kanagawa Oki Nami Ura, expressão que pode ser traduzida literalmente como “sob a onda de Kanagawa”, a xilogravura é um exemplo do estilo de arte ukiyo-e — ou mundo flutuante. A impressão retrata uma grande onda na costa de Kanagawa, no Japão, no exato momento em que um vagalhão se quebra. No primeiro plano da gravura, três barcos podem ser vistos balançando nas águas turbulentas, a caminho da Península de Izu e da Província de Awa, agora Prefeitura de Chiba, provavelmente para coletar uma carga de peixe e vegetais. A força da onda e da crista vem dos vários tons de azul e da mistura do branco da espuma e das nuvens no céu. No horizonte distante, o Monte Fuji pode ser visto erguendo-se majestosamente sobre o mar. É uma representação inspiradora do poder e da beleza da natureza.
A história da criação da obra é obscura e objeto de disputa nos meios artístico e acadêmico. Acredita-se que Hokusai desenvolveu a estampa entre 1829 e 1833, como parte da série de xilogravuras Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji. De acordo com Matthi Forrer, pesquisador do Museu Nacional de Etnologia, na Holanda, provavelmente o artista estava em busca de fazer algum dinheiro em um momento complicado de sua vida. Após a morte de sua mulher, em 1828, ele estava vivendo com a filha Oei e, além das despesas da casa, se viu obrigado a pagar dívidas de jogo do neto. Em um contato com o editor Nishimuraya Yohachi, ele propôs o projeto que, para sua surpresa, foi bem recebido. Os dez primeiros desenhos saíram em 1830, entre eles a impressão oficialmente intitulada Sob a Onda de Kanagawa.
Em dois séculos, a imagem atravessaria o mundo. A partir da Europa, influenciou outros artistas. Como todo ícone pop, foi adaptada, retrabalhada, reconfigurada e estampou desde tatuagens até empenas de prédios, passando por camisetas, canecas de café e até, cúmulo do absurdo, capachos. Entre seus primeiros entusiastas, estavam nomes como Vincent van Gogh, Claude Monet e Henri Rivière. Van Gogh, que se inspirou na gravura para pintar A Noite Estrelada (1889), até mencionou a sua admiração pela imagem em uma carta ao irmão Theo, quando fala sobre a cor azul: “Como você diz em sua carta: essas ondas são garras e sentimos que os barcos estão presos nelas”. Monet foi dono de uma impressão e sua influência se faz sentir claramente na tela As Falésias de Étretat (1885).
A lista de influências é imensa e excede o mundo das artes plásticas. Deslumbrante representação da natureza em seu estado mais primal e caótico, a xilogravura de Hokusai tornou-se uma imagem icônica da cultura japonesa, reconhecível instantaneamente por milhões de pessoas em diversas partes do mundo. Criada por um artista que tinha cerca de 70 anos na época em que foi concebida, a obra também carrega uma prova da permanência da arte como testemunho histórico que deve ser preservado, debatido e transformado. É uma memória que as novas gerações precisam sempre conhecer para poder avançar em suas próprias ideias.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835