Em um ano fraco de unanimidades, pode-se dizer que A Forma da Água é uma das poucas no Festival de Toronto. O longa-metragem de Guillermo Del Toro, que acaba de vencer o Leão de Ouro no Festival de Veneza, coloca-se um pouco à frente dos demais na corrida pelo Oscar.
A Forma da Água é uma mistura de romance e filme de monstro com um pé no musical, que se passa em 1962. A produção abre com um cenário digno de conto de fadas, um apartamento invadido pela água, em que Eliza (Sally Hawkins, ótima) flutua. Mas essa princesa, como fez questão de frisar o cineasta mexicano na apresentação da sessão de gala, não é da Disney. Seu ritual matutino inclui cozinhar ovos, escovar os sapatos e se masturbar na banheira, antes de levar o café da manhã para seu vizinho Giles (Richard Jenkins, excelente), no prédio que fica em cima de um cinema. Eliza e Giles se divertem assistindo a produções antigas, inclusive com Carmen Miranda.
Muda, Eliza trabalha como faxineira em um laboratório do governo, ao lado da falante Zelda (Octavia Spencer). Um dia, os cientistas trazem uma criatura aquática trazida da Amazônia, que o supervisor de segurança Strickland (Michael Shannon) vê como aberração. Mas logo a solitária Eliza vai estabelecer um relacionamento com o expressivo monstro (Doug Jones), mesmo sem trocarem uma palavra.
A Forma da Água pode estar travestido de conto de fadas, de filme de gênero, mas, no fundo, fala de assuntos na ordem do dia com uma dose de subversão. Os sinais estão invertidos: aqui, o homem branco de queixo quadrado não é o herói, mas o preconceituoso que despreza monstros, faxineiros, pessoas com deficiência, negros como Zelda e gays como Giles. O filme diz que estender a mão para o desconhecido é melhor do que vê-lo como inimigo.
É um longa de coração enorme, generoso e visualmente belo, sem traço de cinismo. E, talvez num momento em que a realidade seja dura e confusa demais, em que as divisões são aprofundadas, em que se busca isolar o diferente em vez de procurar os pontos em comum, A Forma da Água seja o filme de que estamos precisando. E é por isso que, talvez, possa quebrar a resistência às produções de gênero na disputa pelas estatuetas douradas.