“Tornei-me atriz porque a atuação é uma fonte de cura.” A frase da americana Viola Davis no livro de memórias Em Busca de Mim, que sai no país em 5 de julho, sintetiza sua dificílima trajetória até o estrelato. Oriunda de uma família paupérrima (até para os baixíssimos padrões brasileiros), ela passou fome, frio, sofreu abusos sexuais, racismo e outras privações antes de se estabelecer como artista respeitada. Com um Oscar, dois Tonys (o “Oscar do teatro”), um Emmy (o “Oscar da TV”) e dezenas de outros prêmios, Viola, 56 anos, é merecidamente reconhecida como uma das grandes atrizes da atualidade. Mas até o lançamento de seu livro — potencializado pelo documentário Oprah e Viola, entrevista conduzida pela experiente Oprah Winfrey e disponível na Netflix — poucos conheciam sua história.
Quinta filha de um casal com seis crianças, Viola Davis nasceu em uma fazenda de algodão no interior da Carolina do Sul, em 1965. Sua família habitava uma “casa” de apenas um cômodo, sem banheiro, água encanada e energia elétrica. Viola ainda era bebê quando os Davis se mudaram para Central Falls, uma pequena cidade em Rhode Island. O salário de seu pai era insuficiente para os gastos domésticos e a família Davis dependia de caridade e do sistema de proteção social. Alimentavam-se e vestiam-se mal, morando de favor em um apartamento de um edifício abandonado.
Não bastasse a carestia, seu pai era alcoólatra e agredia a mãe com socos, pontapés e qualquer coisa que tivesse à mão. “Imagine seu pai espancando sua mãe com um pedaço de madeira, batendo com força nas costas dela, os pedidos por ajuda, os gritos de raiva e fúria”, narra. Viola cresceu com pouco traquejo social; foi uma jovem retraída, que falava palavrões e lidava diariamente com a violência. Era vítima de racismo por ser uma das poucas crianças negras da escola. Traumatizadas, ela e as irmãs fariam xixi na cama até a adolescência. Como não tinham dinheiro para produtos de higiene nem água quente em casa, as crianças Davis fediam a urina. “É engraçado que ninguém nunca nos perguntou sobre nosso ambiente em casa. Ninguém falava com a gente. Havia uma falta de interesse intencional em nós, garotinhas negras.”
A superação de Viola viria pelo mais real e importante dos clichês: a educação. “Não queríamos acabar na mesma situação que nossos pais, nos preocupando com como conseguiríamos a próxima refeição. A escola era o nosso paraíso.” No colégio, ela descobriu o palco. Seu talento, inteligência e força de vontade levaram-na a cursar a faculdade, participar de inúmeras trupes teatrais e ingressar (com bolsa, é bom ressaltar) na mais prestigiada escola de artes dos EUA, a Juilliard School, em Nova York.
Antes mesmo de completar o duríssimo programa de pós-graduação da escola, Viola já era uma profissional representada por uma das maiores agências de atores dos Estados Unidos. Apesar de eventuais participações em filmes e séries, a atriz só explodiu nacionalmente em 2001, com a peça King Hedley II, de August Wilson, que lhe garantiu seu primeiro Tony. Começou aí sua fecunda relação com as obras de Wilson, um dos mais importantes autores teatrais americanos. Em 2010, ela ganharia seu segundo Tony, também com uma peça de Wilson, Fences. E levaria o Oscar de melhor atriz coadjuvante pela versão cinematográfica da mesma peça, Um Limite Entre Nós (2016). Já o Emmy veio por sua atuação na popular série How to Get Away with Murder, fazendo a protagonista Annalise Keating.
Sua última indicação ao Oscar foi em 2021 por A Voz Suprema do Blues, outra adaptação de uma peça de Wilson. Viola vive Gertrude “Ma” Rainey, lenda do blues com histórias de privações, violências e superações similares à dela. Em alfinetada em seus colegas, diz no livro que a “maioria dos atores não quer ser artista, quer ser famosa”. Viola conseguiu os dois, mas não dá bola para a fama — a vida com o marido e a filha adotiva passa longe dos holofotes. Quer apenas ser artista — e se curar de seu passado.
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796
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