Em uma entrevista com ares de papo entre amigas, a escritora Clarice Lispector (1920-1977) e a escultora Maria Martins (1894-1973) trocaram experiências sobre a “carreira” de mulher de diplomata. Ambas se casaram com embaixadores da era Getúlio Vargas, no começo dos anos 40, e passaram anos fora do Brasil. O ambiente social rigoroso exigia que as embaixatrizes ostentassem decoro e simpatia. Clarice e Maria, porém, optaram pela fama de “diferentes”. “Como você, eu me refugiei na arte”, disse a artista mineira à autora. Das 7 da manhã às 6 da tarde, Maria se trancafiava em seu ateliê no sótão da embaixada brasileira em Washington, nos Estados Unidos — antes de alugar um espaço só dela em Nova York. À noite, dedicava-se aos compromissos sociais do marido, o embaixador Carlos Martins Pereira e Sousa. A vida dividida em duas partes, com a obrigação das aparências de um lado e seu “excesso de personalidade” (como viria a ser criticada) do outro, fez de Maria uma figura que, assim como suas esculturas de formas monstruosas e sensuais, hipnotizava e repelia com a mesma intensidade.
Tal dualidade é tangível na belíssima mostra Maria Martins: Desejo Imaginante, em cartaz no Masp, em São Paulo, até janeiro de 2022 — e, a partir de março seguinte, na Casa Roberto Marinho, no Rio. Em vez de domar os opostos dentro de si, Maria os alimentou e fez deles personagens. Inicialmente inspirada por lendas amazônicas, até evoluir para uma mitologia particular de híbridos, com elementos da natureza mesclados a corpos humanos, ela talhava de forma explícita a sexualidade feminina, com seios e vulvas aparentes, ou serpentes lhes atando o corpo, num vislumbre da repressão que acaba vertida em tentação. “O trabalho da Maria é de um erotismo visceral. Ela lidou com questões do inconsciente e do desejo pela óptica da mulher, tema ainda caro à sociedade”, diz a curadora da mostra, Isabella Rjeille.
Chamada por apelidos descabidos, como “Frida Kahlo brasileira” ou “surrealista dos trópicos”, ou ainda reduzida ao posto de “amante de Duchamp” (manteve um caso por dez anos com o iconoclástico francês que transformou mictórios em arte), Maria foi uma artista singular e original. Com o perdão do clichê, estava à frente de seu tempo nos costumes e na arte — ela própria dizia não querer ser rotulada com “ismos”, em resposta à sua classificação compulsória entre os surrealistas após ser abraçada pelo pai do movimento, André Breton (1896-1966). A estética criada por ela era inédita para a época, mas compartilhava com amigos surrealistas como o espanhol Salvador Dalí e o francês Yves Tanguy a representação onírica de sonhos e pesadelos, que espelhavam os horrores da II Guerra Mundial. Décadas mais tarde, curiosamente, o terror pop de produções como o filme O Labirinto do Fauno e a série Stranger Things exibiria uma notável correspondência com o visual de suas deusas e monstros.
Aluna do escultor belga Oscar Jespers e do lituano Jacques Lipchitz, Maria flertou no início da carreira no exterior com o desejo de reafirmar sua nacionalidade. Esculpiu lendas folclóricas e criou seres inspirados em lianas — os cipós tão comuns em florestas tropicais. Era arte para gringo ver. Ao se desprender do estereótipo de estrangeira no Primeiro Mundo, ela enfim mergulhou em si mesma, incorporando às obras um caráter autobiográfico. É sua melhor fase.
Nasce então uma marcante série de peças chamada O Impossível (1944 a 1949) — duas das quais integram a exposição do Masp. As esculturas consistem em uma criatura feminina e outra masculina lançando tentáculos de suas cabeças em busca de conexão. O encaixe não acontece. A alegoria de uma relação insaciável, mas proibida, é associada ao romance com Marcel Duchamp (1887-1968), com quem ela teve uma prolífica relação profissional de apoio e influência mútuos. Ao voltar para o Brasil, na década de 50, já consagrada nos Estados Unidos, Maria se impôs como um nome incontornável da produção artística mundial. Ainda à sombra do modernismo caipira, os críticos e artistas locais inicialmente torceram o nariz para a filha pródiga que chocou com suas obras “obscenas”. Mais tarde, renderam-se a ela, especialmente pelo papel que Maria viria a exercer como mediadora entre artistas europeus e museus brasileiros: ela viabilizou a vinda de quadros de Picasso para a II Bienal de Arte, de 1953.
Foi só no século XXI que Maria alcançou um lugar de deferência no Brasil. “Há um resgate das obras dela pelo olhar de mulheres, que hoje ocupam o lugar da crítica masculina da época”, diz a curadora. Uma das peças mais impressionantes da mostra é a imponente However!!, figura feminina de bronze, de quase 3 metros de altura. Um monstro sagrado que exige respeito — assim como sua criadora.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753
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