Foi-se o tempo em que a poesia era um ofício da alta erudição e consumida somente por um público restrito. Hoje, jovens ao redor do mundo publicam seus versos nas redes sociais e arrebanham um exército de seguidores. É o caso da escritora Rupi Kaur, de 30 anos, que acumula 4,5 milhões de seguidores em seu perfil no Instagram, no qual compartilha seus poemas curtos em textos sem maiúsculas, acompanhados de ilustrações minimalistas. Com três livros publicados que já venderam mais de 11 milhões de cópias mundialmente – as coleções de poesia Outros Jeitos de Usar a Boca, O que o Sol Faz Com as Flores e Meu Corpo, Minha Casa, publicados no Brasil pela editora Planeta – Rupi se apresenta no país pela primeira vez no sábado, 4, em São Paulo, como parte de uma turnê mundial. Trata-se de um show de poesia falada: em cima do palco, com visual deslumbrante, a artista proclama seus versos, entre poemas publicados e inéditos. Música e projeções especiais completam o cenário – é como se Rupi estrelasse um sarau modernoso e muito pessoal.
Nascida na região de Punjab, na Índia, Rupi emigrou para o Canadá aos 4 anos. Sua poesia, traduzida para mais de 42 idiomas, tem marcas do feminismo contemporâneo e trata de temáticas complexas e atuais como abuso, relacionamento tóxico, depressão, traumas e migração, exprimindo experiências pessoais. Agora, ela está trabalhando em uma coleção de poemas em prosa mais longa, um livro de memórias e uma obra infantil ilustrada. Rupi contou a VEJA que o Brasil estava no topo da lista de países que queria conhecer, e que tentou aprender um pouco de português antes de vir. “Meus leitores no Brasil são tão apaixonados. Coloco muito coração no meu trabalho, e sinto que eles pensam de forma semelhante sobre isso”, disse. Confira a entrevista:
Como você começou a fazer apresentações de poesia falada? Comecei a me apresentar há cerca de 13 anos, na adolescência. É difícil descrever. Naqueles primeiros anos, parecia que algo muito maior do que eu tivesse assumido o controle e me empurrado para aquilo, porque era algo muito fora da minha personalidade, eu era super tímida. No ensino médio, me deparei com um pôster anunciando um evento de microfone aberto. Escrevi um pequeno poema que nem lembro sobre o que era e apresentei para umas vinte pessoas. Enquanto estava lá em cima no palco, algo foi desbloqueado dentro de mim: nunca antes eu tinha me sentido ouvida. Cresci sendo ensinada a ficar quieta, ser respeitosa, manter minha cabeça baixa, não fazer barulho… E ali estava eu, minha voz reverberando. Foi uma sensação eletrizante. Não achava que isso seria minha carreira um dia. Hoje, transporto o aspecto visual inerente à minha poesia para os palcos, após anos compartilhando meu trabalho por escrito nas redes sociais.
Muitos de seus poemas abordam temas difíceis, como abuso e depressão. Como lida com essa bagagem emocional pesada no palco? Lembro de sair do palco e me sentir carregada, e comecei a pensar que não podia passar uma hora só falando sobre esses temas. Porque a depressão não é tudo o que eu sou. É uma pequena parte de mim. Então, ao longo dos anos, me vi trazendo humor para a situação para equilibrá-la e amenizar o clima. Metade do meu show é poesia e a outra metade é contar histórias, comédia. O primeiro poema que vou apresentar no Brasil se chama “depression doesn’t knock” (depressão não bate à porta) e foi inspirado na relação engraçada que comecei a ter com a depressão quando finalmente aceitei que era algo que estava acontecendo comigo. Foi uma forma de rir da minha própria situação, do fato de que é difícil até mesmo sair da cama, mas ainda assim o único modo de melhorar é tentar de tudo e fazer o máximo. Acho que o público se identifica com essa experiência.
Há alguns anos a internet vem se consolidando como espaço de auto-publicação para poesias bem pessoais como a sua. Como analisar a qualidade artística dessas produções? A arte é tão subjetiva, não acho que haja uma resposta certa. Também devemos nos perguntar: quem decide e controla o que é boa arte? Como essas pessoas se parecem e quem elas deixam passar pela porta? Começamos a ver um padrão muito específico: predominantemente masculino e branco. Essa é uma grande parte do motivo pelo qual eu comecei a me auto-publicar, percebi que no mundo literário no Ocidente, a poesia sobre emoções humanas escritas por uma jovem mulher não-branca, de 20 e poucos anos, simplesmente não ia ser levada a sério. As pessoas no poder, especialmente no mundo literário, que é tão elitista e tão exclusivo, veem mulheres falando sobre emoções e acham que é algo esperado, nada original ou surpreendente. No entanto, se os homens fazem isso, pensamos “uau, ele é tão emocionalmente inteligente”.
Sua primeira coleção de poesia foi publicada quando você tinha 20 e poucos anos. Aos 30, o que mudou em sua experiência como escritora? Acho que escrever ficou mais difícil. As pessoas sempre me perguntam como encontrar tanta inspiração. E o fato é que não fica mais fácil, como ingenuamente pensei que ficaria. Escrever meu primeiro livro foi uma experiência de liberdade. Eu era destemida, era um processo orgânico, não estava realmente pensando no resultado, não havia público para o qual eu pensava estar escrevendo e que precisava agradar. Agora parece que há muito mais em jogo. Estou lentamente tentando me liberar das pressões e encontrar uma maneira de voltar à minha voz criativa de uma maneira gentil.
Como foi a experiência de crescer como uma mulher indiana no Canadá? Cresci em Toronto, uma cidade única porque há pessoas de diversos países vivendo ali. É uma área bem diversificada, e me sinto sortuda por isso. Mas claro que crescer como uma mulher punjabi no Canadá teve momentos muito difíceis, especialmente quando era criança e adolescente e me comparava com os outros. Pensava: Tudo que eu queria era ser outra pessoa, por que tenho que ter essa cor de pele? E por que não comemoramos o Natal e fazemos todas as coisas que os outros canadenses fazem? Mas eventualmente comecei a abraçar todas as minhas diferenças. Isso aconteceu quando me envolvi em trabalhos de ativismo juvenil no final do ensino médio e na universidade, em organização comunitária. Isso me ensinou meus valores como mulher não-branca e como feminista. Foi ali que comecei a apresentar minhas poesias também.