Em 20 de junho, Maria Júlia de Araújo Dias completou 19 anos. A comemoração do aniversário da modelo carioca foi discreta, em um restaurante no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em companhia apenas dos pais e das duas irmãs, já que a realização da festa pretendida esbarrou na persistência da pandemia de Covid-19. Na ocasião, ela ganhou uma bandeja almofadada toda colorida, com lugar para pipoca e bebida, para assistir aos seus filmes e séries preferidas com conforto. O melhor e o mais aguardado presente, no entanto, havia chegado menos de um mês antes, quando a L’Oréal Paris a anunciou como a primeira brasileira com síndrome de Down a compor o time de embaixadoras da marca de cosméticos francesa. Maju, como é conhecida no meio da moda, se juntou a nomes como as atrizes Gabriela Loran e Taís Araujo, deixando evidente o esforço da empresa em promover inclusão e pluralidade, uma necessidade cada vez maior no mundo contemporâneo e em qualquer área.
Fazia tempo que Maju sonhava com esse momento. Sua inspiração foi a australiana Madeline Stuart, hoje com 24 anos, considerada a primeira supermodelo com síndrome de Down do mundo. Em 2014, após assistir a um desfile com a mãe, ela perdeu 20 quilos para fazer uma sessão de fotos e compor seu primeiro book. No ano seguinte, uma campanha on-line promovida pela família levou Madeline a assinar contratos com marcas de moda fitness e de acessórios. Desde então, a ruiva de olhos azuis já desfilou nas passarelas das semanas de moda de Nova York, Paris, Londres e Moscou. Além disso, também fez editoriais para a Vogue Austrália e outras revistas de renome.
A trajetória de Maju, no entanto, teve alguns solavancos que foram além das dificuldades naturais de uma pessoa com deficiência e incluíram a resistência de agências e escolas de modelagem a aceitá-la. A desculpa mais comum era falta de experiência. “Mas como ela vai adquirir experiência se ninguém dá oportunidade?”, respondia a mãe, Adriana, quando ouvia as justificativas vagas. Em 2018, a garota passou a integrar o Projeto Passarela, uma iniciativa do Grupo MGT para agenciar novos talentos na área de modelagem. Foi então que as oportunidades de percorrer passarelas começaram a aparecer.
Pouco antes de começar os primeiros desfiles, no entanto, uma meningite deixou Maju em coma e adiou por um tempo a realização do sonho. Internada no Hospital Pasteur, no Rio, ela chegou a ser desacreditada pelos médicos, que não consideravam nem a hipótese de uma recuperação parcial. O sofrimento durou quinze dias, nos quais a família se apegou em manter os compromissos da então candidata a modelo. Contrariando todas as expectativas, ela acordou e estava disposta. Dias depois, começou a cumprir a agenda que a esperava desde antes da hospitalização.
O ano de 2019 foi de formação. Enquanto fazia um curso de modelagem, Maju participava de todos os desfiles que apareciam, para adquirir a experiência exigida por agências e marcas. Após se formar, ela se tornou a primeira modelo com Down a desfilar nas passarelas da Brasil Eco Fashion Week. E depois bateu o recorde de desfiles em uma semana de moda: mais de quarenta vezes na terceira edição da Osasco Fashion Week, em 2020, num esforço que surpreendeu a família. “Chegou uma hora que eu estava esgotada, só queria ir para o hotel, mas ela me disse que queria continuar”, disse a mãe de Maju a VEJA, ao lado da filha, em uma ligação por vídeo.
Depois de superar as dificuldades de aceitação e de uma doença grave como a meningite, Maju estava pronta para dar seu maior e mais ambicioso passo, que era iniciar a carreira na Europa. Adriana conta que chegou a receber a minuta de contrato com uma agência de lá quando a pandemia de Covid-19 surgiu e, em um primeiro momento, acabou confinando a população mundial para evitar o crescimento do contágio. A modelo e sua família seguiram o protocolo. Naquele período, a jovem usou seu tempo para se reciclar e investir nas redes sociais. No Instagram, por exemplo, ela tem hoje quase 330 000 seguidores e compartilha desde momentos de sua rotina até dicas de cuidados e beleza.
O contrato com a L’Oréal foi anunciado em 25 de maio. Na ocasião, Maju publicou uma foto em seu perfil no Instagram, feita por Nila Costa, que a mostra segurando o mundo. “Essa foto me emociona porque me faz lembrar de quando tudo começou, de quando ninguém me conhecia, de quando eu ainda tinha muito medo da grandeza do propósito que Deus me deu. Hoje, dois anos depois de me formar profissionalmente, com dois anos de carreira, vejo quanto pude evoluir e crescer em todos os sentidos”, escreveu ela. De um dia para outro, a conta ganhou mais de 50 000 seguidores.
De lá para cá, Maju tem investido na remoção de mais um obstáculo causado pelo preconceito: “Saber falar”. Embora se expresse bem, a cobrança deixou-a desconfortável e com vergonha da forma como se expressava. Para contornar o problema, ela aprendeu Libras, a língua brasileira de sinais, e muitas vezes a usa para acompanhar suas falas. Tudo isso a deixou mais confortável para a realização de uma série de documentários na IGTV, como é chamada a seção de vídeos do Instagram, e de um filme documental sobre sua vida, além de outros projetos audiovisuais que estão sendo discutidos. O mais importante para ela, porém, tem sido incentivar a quebra de paradigmas. “Quero muito que outras pessoas como eu tenham as mesmas oportunidades que estou tendo e que não aceitem o “não” como resposta”, disse a modelo a VEJA. Aos poucos, as barreiras estão caindo.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744