“Ser mãe é uma escolha”, diz socióloga que defende legalização do aborto
Jacqueline Pitanguy, 77, narra o estigma que sofre por abraçar a causa no Brasil
A efervescente década de 60 foi particularmente importante para mim. Com 19 anos, estudando sociologia na Bélgica, temi estar grávida de um namorado que tinha à época. Havia um mundo de possibilidades à minha frente e um filho naquele momento não cabia em meus planos. Longe de casa e da minha família, me senti desamparada: teria de sustentar uma gestação indesejada, já que, naquela época, o aborto era ilegal e punido com prisão. Felizmente, o caso acabou se revelando como falso positivo. Mas o episódio me marcou para sempre. Pela primeira vez, percebi que certas escolhas e liberdades não estavam disponíveis para as mulheres, para quem a gravidez se impõe como um destino biológico, não uma decisão consciente. Foi um choque, que demorou um certo tempo para ser elaborado, mas que me levou a lutar pelo direito de ser dona do próprio corpo e viver a maternidade como uma escolha.
Não foi uma trajetória simples. Até o Ensino Médio, segui o roteiro reservado às “moças de boa família”, estudando em colégios de freiras que pregavam verdades absolutas e puniam atos considerados pecaminosos. Nunca me enquadrei nesse formato, sendo expulsa por não aceitar a forma como as madres exerciam autoridade. Em casa, felizmente, cresci em um ambiente mais acolhedor e progressista, mas temas como liberdade sexual feminina jamais fizeram parte das conversas. A temporada na Europa serviu para abrir minha cabeça, e estudei também no Chile, durante o governo de Salvador Allende. Ao voltar ao Brasil, comecei a trabalhar na PUC-Rio com uma pesquisa sobre a condição das mulheres no mercado de trabalho. A diferença entre homens e mulheres ficou evidenciada nas estatísticas, me sentia descobrindo um novo continente. O nascimento de minha filha, Andrea, fruto de uma união estável e de uma gravidez planejada, me fez sentir mulher como nunca antes e fez a condição feminina entrar de vez na minha agenda.
Nos anos 1970, eu e outras professoras formamos um grupo feminista de discussão e reflexão, e participamos da fundação do Centro da Mulher Brasileira, que se tornou a primeira organização feminista do país. Lutávamos pelos direitos reprodutivos com o lema “Nosso corpo nos pertence”, aí inclusa a possibilidade de interromper uma gravidez indesejada, sem risco à saúde. Ser mãe é uma escolha e não pode ser uma imposição. A demanda despertou a ira de grupos conservadores que, nestes mais de cinquenta anos de batalhas, me atacaram de diversas formas. Certa vez, me jogaram carne crua, ao chegar a uma universidade para dar uma palestra. Mais recentemente, sofri ofensas quando a então ministra Damares Alves publicou nas redes sociais que eu defendia a morte de bebês. Era uma briga entre Davi e Golias, porque ela tinha muito mais poder e influência que eu.
É triste pensar que, desde que levantamos a bandeira do direito ao aborto, pouca coisa mudou. Há três décadas, escrevi um artigo em VEJA dizendo que os políticos tratam o tema como batata quente. Todos temem se queimar e jogam o problema para a frente, fazendo-o persistir. Percebi isso quando presidi o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, no Congresso Nacional, no fim da década de 80. Atualmente, uma em cada sete mulheres brasileiras que completam 40 anos já passou por um aborto. Muitas, sobretudo as mais vulneráveis, mulheres e meninas negras e pobres, correram risco de vida, ao fazê-lo em clínicas clandestinas, ou em casa, sem qualquer assistência médica. De vez em quando, me sinto cansada por não ver a pauta avançar no campo da saúde pública e até sofrer risco de retroceder. O que me conforta é que, para cada opositor, existe uma mulher brigando pelo que deveria ser seu por direito. Me apoio muito nelas, inclusive na Andrea, que se tornou uma feminista convicta. Minha maior esperança é que minhas duas netas possam crescer em um país onde suas liberdades sejam respeitadas, e que meus netos sejam defensores desta liberdade..
Jacqueline Pitanguy em depoimento dado a Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858