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“Ser desobediente é o que nos mantém vivos”, diz o chef argentino Francis Mallmann

Conhecido pelas inovadoras técnicas de grelhar carnes, Mallman se dedica aos legumes e vegetais em seu novo livro, "Fogo Verde"

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 ago 2024, 17h37

É praticamente impossível falar da gastronomia sul-americana – e dos preparos de alimentos no fogo – sem mencionar o nome de Francis Mallmann. O argentino ajudou a popularizar um estilo de cozinha no fogo, a céu aberto, que hoje é referência para qualquer cozinheiro que se aventure a fazer churrasco. Ajudou a divulgar o estilo de cozinha da Patagônia, no sul da Argentina, e colocou o país no mapa internacional. Foi tema de um capítulo da importante série Chef’s Table, da Netflix, e é autor de livros fundamentais, como “Sete Fogos“, publicado em 2009.

Com uma sólida carreira, poderia viver tranquilamente de suas conquistas passadas. Mas Mallmann faz parte de um movimento de grandes chefs que têm se reinventado. Em seu novo livro, Fogo Verde (Companhia das Letras, 312 págs., 199 reais), deixa as carnes de lado para se dedicar aos vegetais e frutas grelhados nas chamas. Segundo ele, abrir mão da carne – ao menos em algumas refeições – é uma forma de se conectar com um público jovem, mais preocupado com sustentabilidade e o futuro do planeta.

Na entrevista a seguir, Francis Mallmann fala sobre vegetais, o futuro do consumo de carne e as tendências da gastronomia:

O senhor sempre trabalhou com carne. Agora, acaba de lançar um livro sobre vegetais. Não é contraditório?
Não acho. Eu recebia centenas de milhares de mensagens de pessoas, principalmente jovens, que diziam adorar a minha cozinha e meu estilo de cozinhar, mas não comiam carne. Achei que devia algo a essa gente. E comecei a pensar, há quatro anos, em fazer um livro apenas com receitas vegetarianas e veganas.

Mas essa decisão não poderia ser vista como oportunismo?
Olhe, adoro frutas e vegetais e sempre as utilizei muito em minha cozinha. Além disso, o mundo está mudando. Temos que deixar de matar tantos peixes, temos que comer carne sabendo de onde vem. Temos que repensar a forma desastrosa como o frango que comemos é produzido. Achei que era um bom momento para discutir esses temas. Eu amo carne, como dia sim, dia não. Mas algumas coisas precisam mudar.

A sociedade comerá menos carne no futuro próximo?
Não tão cedo. Vamos ter regras mais eficientes para medir a rastreabilidade e controlar o tratamento do gado de corte. Além disso, há projetos muito interessantes de produção de carne em laboratório a partir das células dos animais, depois cultivadas com proteínas, açúcares e gordura. Eu mesmo ajudo uma empresa de Singapura a desenvolver a produção de carne de frango dessa maneira.

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Ela é tão saborosa quanto a verdadeira?
Não. Mas a tecnologia é rápida e sabemos que logo avançará. Com a carne de laboratório, se perde o romance, sem dúvida. Mas o planeta está destruído, e nosso dever é zelar por ele. Todas essas alternativas provocaram uma imensa transformação. Temos de ouvir os desobedientes.

Como assim?
O mundo só sobreviveu até agora graças à desobediência. Os desobedientes enfrentaram coisas que estavam arraigadas na sociedade, como o modo como preparamos e consumimos carne, e provocaram mudanças. Às vezes boas, às vezes péssimas.

O senhor é um desobediente?
Claro. Temos que quebrar regras e mudar, senão morremos na comodidade e na rotina. Ser desobediente é o que nos mantém vivos.

Mas pôr os vegetais à frente das carnes é um ato de desobediência?
Sim. Veja um exemplo. Eu brinco que tenho duas amantes na vida com quem nunca dormi: a cidade de Paris e as batatas. Hoje, mais velho, sem tantas namoradas, não acho que seria tão ruim dormir do lado de um saco de batatas (risos). Mas não são só elas que me atraem. O mais lindo é que os vegetais precisam de muito pouco para brilhar.

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E do que eles precisam?
De um pouco de azeite, uma boa manteiga, um pouco de sal. E só. Os vegetais funcionam no tipo de gastronomia que imagino. Quando cozinho, não acredito na harmonia. Quero a luta dos sabores na boca. Amo vinho branco com carne, ou vinho tinto com peixe. O suculento com o crocante. É isso que faz a boa comida.

O senhor mencionou a preocupação dos jovens por uma alimentação baseada nos vegetais. Eles estão mais preocupados com a sustentabilidade?
Vou contar uma história. No fim dos anos 1960, acontecia uma revolução no mundo. Eu era jovem, tinha 14, 15 anos, e vivia na Patagônia, no fim do mundo. Mesmo assim, sentia que estava de mãos dadas com todos os jovens do mundo. Contra a guerra do Vietnã, a favor da música de protesto e das liberdades, todas, de se vestir, de ter o cabelo comprido. Hoje, sinto que acontece a mesma coisa. Os jovens estão juntos na tentativa de melhorar o planeta em que vivem. Eu estava em Hong Kong há cerca de cinco anos, quando houve uma grande repressão contra os jovens que protestavam. Eles seguravam as mãos uns dos outros e mesmo recebendo golpes da polícia não se moviam. Essa força, essa crença é o que vai mudar o mundo nos próximos anos. Quando esses jovens tiverem 27, 28 anos, e estiverem tomando decisões em todos os ambientes, o mundo vai finalmente mudar.

É postura que passa por compras mais conscientes de alimentos?
Sim. Muitos acham difícil acreditar nas embalagens dos produtos que compramos, mas os governos têm cada vez mais controle sobre o que chega ao mercado. É mais fácil saber de onde as coisas vêm, como elas são feitas e o que elas têm ali dentro. Quem compra algo hoje sabe o que está levando.

O senhor foi pioneiro em mostrar as técnicas do fogo ao ar livre. Agora, há muitos outros chefs que citam seu trabalho como inspiração.
É algo muito lindo. Fico extremamente contente porque sinto que nossa linguagem de cozinha tem uma voz forte e universal. Quando comecei, nos anos 1990, muitos riam de mim, especialmente os chefs da gastronomia molecular. Mas eu, com meus ferros, madeiras e fogos ao ar livre acreditava naquilo que fazia.

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Ser um dos chefs mais celebrados do mundo traz certa responsabilidade?
A responsabilidade maior está em falar com todos os chefs jovens que vêm me procurar. Quando comecei a estudar, aos 20 anos, e estava em Paris, foi muito difícil, mas muitos cozinheiros me abraçaram e me ensinaram. Agora, é minha vez de estar perto dos jovens e ensiná-los, mostrar as técnicas. E valorizar os produtos e ser um ativista em algumas causas.

Quais?
Há muitos anos, por exemplo, não usamos mais salmão criado em cativeiro, porque ele pode ser muito ruim. Agora, estamos lutando contra uma decisão do governo da Islândia de instalar grandes criadouros de salmão. Vamos fazer um barulho por lá no fim do mês.

Ser um chef hoje, então, é ser um pouco ativista?
Sim, porque se você tem uma voz que é escutada, você tem uma responsabilidade. É preciso olhar ao que passa ao redor, de toda a cadeia de produção, e tentar melhorar. Meus restaurantes não são perfeitos, mas estamos sempre melhorando. Rastreando os alimentos, usando menos plástico, e por aí vai.

O que há de mais interessante na nova geração de chefs?
É um momento muito especial. Se olharmos para os últimos 60 anos, veremos que até o fim dos anos 1970 a França levantava uma bandeira muito forte. Nos ano 1980, começou a se falar na cozinha “fusion”, de fusão, da união entre ocidente e oriente, e essa coisa de mesclar técnicas, algo que nunca me interessou muito. Depois, a Itália começou a ganhar mais destaque, e a gastronomia italiana é a que mais me agrada. Mas olhando para trás, notaremos que cada etapa tecnológica durou menos tempo que a anterior. Houve a gastronomia molecular, que fez barulho durante uns dez anos. Depois, veio o Peru, que também atraiu muita atenção.

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E agora?
Não sei (risos). Mas sinto que o fogo tem um papel muito forte. Não digo a nossa cozinha do fogo, mas essa coisa de retornar às chamas. As pessoas acham que o fogo é uma coisa brutal, masculina. Mas para ser um bom cozinheiro de fogos é preciso ter algo feminino, uma sutileza, uma intuição. Fogo não é brutal, de queimar. É uma cozinha de detalhes. Se cozinho algo que demora 14 horas para ficar pronto, preciso ficar atento o tempo todo. Ver como a gordura da carne está escorrendo, como está a umidade dos peixes, como estão as verduras, os abacaxis. É preciso estar alerta, porque decisões são tomadas a todo instante. Essa é a beleza da cozinha. Ela não pode ser abandonada. É como o primeiro amor, em que você está sempre ansioso e quer saber tudo o que acontece.

O mundo está olhando para a gastronomia feita na Argentina?
Acredito que sim. Há muita gente jovem que está se destacando, e me sinto feliz com isso. Mas entendo que não dá para esperar uma “moda” da comida argentina. A velocidade das comunicações é tão rápida que as modas acabaram. Além disso, as pessoas hoje sabem quando algo é verdadeiro ou não. E, se não é, simplesmente seguem adiante.

Qual é o futuro, então?
Com certeza não serão mais as tendências que duram anos ou décadas. Acredito em algo multifacetado. Os jovens, novamente eles, estão muito mais bem informados. E ajudaram a desmistificar, no bom sentido, a imagem que se tinha dos grandes cozinheiros.

Como isso aconteceu?
Aquela coisa inalcançável desmoronou. Qualquer ídolo, como um músico, não está mais em uma posição superior. Ainda existe certo misticismo, mas muito menos do que antes. E isso acontece também na cozinha. Antes, falavam de “Francis Mallmann, o chef que trabalhava com fogo”. Hoje, as pessoas estão mais livres para questionar algo no meu trabalho que elas não gostam.

É possível imaginar uma cozinha feita com Inteligência Artificial?
É muito difícil. A velocidade de mudança é rápida, mas não nos iludamos. A base, o classicismo, isso não vai se perder nunca. Para que um cozinheiro possa trabalhar bem, fazer uma gastronomia moderna, ele deve conhecer, em profundidade, a história da cozinha. Como Picasso, conhecido pelo cubismo, mas que podia desenhar o clássico perfeitamente. Isso vale para todos os ofícios. É possível ter as melhores máquinas, mas o trabalho das mãos é fundamental. Podem existir coisas muito modernas, mas o gesto humano sempre será apreciado.

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