Quando assumiu a cadeira de primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, então com 37 anos, era a líder mais jovem do planeta nessa posição e chamava a atenção por agir como uma poderosa com os pés no chão. Sua visibilidade disparou na pandemia, ao conseguir frear a disseminação do vírus em seu país à base de uma rígida política de lockdowns. Mais tarde, cobraria seu preço, levando a aprazível ilha do Pacífico que comandava a atravessar uma crise econômica à qual não estava habituada. E a premiê, que havia inspirado a onda global “jacindomania”, viu-se de repente na mira da crítica. São trovoadas comuns para gente do cacife dela, mas Jacinda surpreendeu ao vir a público com a voz embargada anunciar que chegara ao limite: “Não tenho mais o combustível necessário para fazer esse trabalho da melhor forma”, disse. No dia 25 de janeiro, deixou o cargo e uma reflexão ao restante dos mortais sobre conseguir abrir mão de prestígio e poder em nome de itens mais abstratos, como paz interior e sintonia consigo mesmo.
“Estou saindo porque, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades — inclusive a de saber quando você é a pessoa certa para liderar e quando não é. Eu sei que não tenho mais o combustível necessário para fazer esse trabalho da melhor forma.”
Jacinda Ardern, 42 anos, ao anunciar sua renúncia ao posto de primeira-ministra da Nova Zelândia, em 19 de janeiro.
A ala dos sociólogos dedicada às questões do mundo do trabalho vem alertando para os perigos embutidos na associação automática que se faz entre desistir e fracassar, como se fossem sinônimos. Na verdade, eles enfatizam, saber a hora de parar é um ato de grandeza e até generosidade consigo mesmo, uma vez que romper ciclos incômodos pode se desdobrar em uma vida melhor. “É difícil quebrar a lógica de que é preciso estar no topo para ser reconhecido como alguém de sucesso”, reconhece a socióloga Ana Beatriz Seraine. “Mesmo que aquilo não traga prazer à pessoa, ela é incentivada de variadas maneiras a permanecer para provar seu valor.”
A preservação do status quo, questão mais delicada ainda para quem chegou longe na hierarquia, leva uma parcela da turma agarrada a seus postos a admitir ter uma vida de qualidade mediana, com consequências que repercutem negativamente na saúde física e mental. Um vasto levantamento da empresa Vittude, especializada em psicologia, com mais de 1 000 altos executivos do setor privado, aponta que 55% convivem com níveis de estresse bem acima do desejado. No extremo, isso pode desencadear sintomas de burnout, modalidade de esgotamento emocional em que o Brasil ocupa a vice-liderança, atrás apenas do Japão: em 2022, 30% da força de trabalho sofreu desse mal — o que pode, aliás, ter sido o caso de Jacinda, segundo especula-se.
Em muitos casos, chegar ao limite é o catalisador da duríssima decisão de abrir mão. Ocorreu com o engenheiro Claudio Hermolin, 49 anos, que era CEO da Brasil Brokers, uma das grandes no ramo de consultoria imobiliária, e vivia entre reuniões e viagens. Um dia, sentiu calafrios, formigamento e falta de ar. “Me assustei quando o médico disse que minha saúde mental estava afetada, e percebi que precisava mesmo mudar meu estilo de vida”, conta. Em 2021, respirou fundo e pediu demissão. Fez-se um vazio inicial, já que o trabalho tomava todo o seu tempo, mas depois ele inaugurou nova fase — seguiu na mesma área, com menos responsabilidade e menos dinheiro, mas mais satisfeito. Libertou-se de amarras que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, da Universidade de Artes de Berlim, atribui à “sociedade do desempenho” — um termo cunhado por ele —, onde as pessoas se sentem pressionadas a se manter constantemente produtivas. “Elas viram escravas de si mesmas”, resume.
A história é farta em exemplos da dificuldade humana em reconhecer o momento de parar — resolução que envolve um misto de calculada inteligência e desprendimento. Muita gente acaba esticando a corda como pode, caso do craque Cristiano Ronaldo, que, aos 38 anos e em esperada curva descendente, aventou a possibilidade de pendurar as chuteiras no improvável cenário de Portugal vencer a última Copa do Mundo. Não aconteceu, mas o jogador resolveu estender a carreira para embolsar uma bolada anual de 200 milhões de euros em um clube da Arábia Saudita. Por ora, a decisão só arranhou sua imagem — recentemente, viralizou um melancólico vídeo em que torcedores locais pisoteavam a camisa 7 que ele veste em protesto a um gol perdido que levou à eliminação do time. Muitos chegam ao ponto de anunciar a saída de cena, mas caem na tentação de voltar, não raro um equívoco. Em diversas ocasiões, ainda no auge, o cantor Frank Sinatra (1915-1998) comunicou sua aposentadoria. Não resistiu. Nos anos 1980, fechou contrato com um hotel em Las Vegas num ponto da vida em que sua voz já falhava. Um dos maiores artistas de todos os tempos era então apenas uma sombra do que fora.
A trajetória dos que abandonam o barco no ápice, por sua vez, costuma render novos e profícuos capítulos. Criador da Microsoft, que revolucionou toda uma indústria, Bill Gates resolveu afastar-se do comando da empresa em 2008, com apenas 52 anos, quando a pressão sobre ele andava nas alturas. A partir daí, voltou-se para sua fundação — “entendi que era o que eu queria para o resto da minha vida”, afirmou. Ele e outros (veja o quadro), como a estrela-mor do tênis Serena Williams — que depois de quatro vice-campeonatos em Grand Slams se aposentou e hoje é uma bem-sucedida empresária —, mostram que como saber a hora de parar é quase uma ciência.
As discussões sobre autoconhecimento e saúde mental, potencializadas pela pandemia, contribuem para levar cada vez mais pessoas a buscar propósitos que lhes façam sentido. Em seu livro Dona de Si, Deborah Wright, 65, ex-CEO de multinacionais como Parmalat, Kibon e Philip Morris, compartilha sua experiência sob o fogo cruzado corporativo. Aos 53 anos, ela deu um basta ao mundo em que atuou por três décadas. “Não é simples se reinventar. Comecei a fazer terapia, praticar esportes e estreitar laços que havia deixado de lado”, conta a VEJA. Hoje, participa de conselhos de empresas e leva uma vida boa. Na vez de Jacinda, ela falou o que muita gente deveria: “Sou humana, chegou a hora de parar. Não tenho energia para mais quatro anos”. Que faça escola.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828