Entre barricadas e flores, ideologia e bom humor, em maio de 1968 o mundo descobriu nos muros de Paris a força revolucionária das pichações. A juventude rebelde decretava ser “proibido proibir” com a “imaginação no poder”. Gritava-se, em spray: “As paredes têm ouvidos, seus ouvidos têm paredes”. Com o tempo, contudo, e um suposto fim da história que nunca veio, os slogans urbanos perderam um pouco de sua força — e deram espaço a uma espécie de espetáculo mais atrelado a habilidades de desenhos e pinturas do que a mensagens.
Vive-se agora uma pequena revolução, um passo além do que nos habituamos a ver nas metrópoles cinzentas e poluídas. Nos últimos tempos, as empenas de prédios, aquelas paredes sem janelas, e outras frestas de concreto, têm sido usadas como plataforma de denúncia para diversos tipos de problemas sociais. Em tempo de redes sociais, é louvável perceber que o ar livre virou palco para iluminar a falta de liberdade. Os grafiteiros de urgência se autointitulam “artivistas”, e convém prestar atenção no que andam rabiscando.
O maior (literalmente) exemplo desse movimento é um mural de 1 500 metros quadrados erguido nas proximidades da Avenida Paulista, em São Paulo. Nele, há o retrato da conhecida líder indigenista Alessandra Munduruku em um cenário de destruição das queimadas da Amazônia. Nas mãos, ela segura um cartaz com a mensagem “Stop the destruction #keep your promise” (“Pare a destruição #mantenha sua promessa”). A obra, assinada pelo grafiteiro paulistano Mundano, de 38 anos, rodou o planeta em reportagens de jornais e TV. “Nas ruas, o artivismo encontra o lugar perfeito pelo impacto visual e emocional que possibilita”, diz Mundano. Esse grande “Post-it colorido”, como o próprio artista define, permanecerá na paisagem urbana por pelo menos seis meses, até ser trocado por alguma outra demanda.
Quase como metalinguagem, os eventos climáticos extremos e os povos originários ameaçados pedem passagem nas pinturas públicas, embora brotem outros temas. O grafiteiro paraense And Santtos, por exemplo, divulga com insistência a relevância da cultura indígena no Brasil. Por isso, foi chamado neste ano para fazer dois murais na Universidade Federal do Pará, batizados de Manto Tupinambá e Território Mairi. A instituição usa a arte para reafirmar o compromisso de incorporar o conhecimento ancestral do povo da Amazônia no campus. No Rio de Janeiro, a carioca Panmela Castro, 43 anos, usa pincel e latas para lutar pela igualdade de gênero e contra o feminicídio e a violência doméstica. São obras tensas e carregadas de cores dramáticas. É impossível não vê-las ao caminhar.
A arte engajada sempre existiu. No grafite, no entanto, esse espírito estava adormecido devido a um encantamento dos artistas com as imensas possibilidades comerciais que foram oferecidas a partir do momento que essa arte, originariamente restrita às ruas, passou a fazer parte da cultura pop. Muitos grafiteiros começaram a ser chamados para decorar paredes e muros dentro de residências. Outros saltaram da rua para a galeria de arte. É o caso dos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, osgemeos, de 50 anos, que estão frequentemente em cartaz com exposições em museus de prestígio, mas passaram boa parte da juventude pintando clandestinamente muros de grandes avenidas, bem longe dos olhos da polícia paulistana. No Brasil, grafitar deixou de ser crime em 2011, quando uma lei federal determinou que a intervenção artística no muro alheio é permitida, desde que com autorização do proprietário.
O muralista internacional Eduardo Kobra, com obras avaliadas entre 50 000 e 300 000 dólares, até comprou algumas brigas com sua arte no passado. Uma delas aconteceu em 2013, quando pintou uma homenagem à bailarina russa Maya Plisetskaya, e de brinde deixou uma mensagem pela liberdade da brasileira Ana Paula Maciel, presa por protestar contra a exploração de petróleo no Ártico. Kobra sempre se destacou mais pela técnica e pelo nível de detalhamento de suas obras do que pelo engajamento social — ao contrário da nova turma, reafirme-se, que faz das superfícies razoavelmente lisas panfletos visuais. “Estamos em uma época tão cheia de conflitos que o protesto é vital”, diz Digo Amazonas, produtor do Megafone Ativismo, entidade que organiza premiações e incentiva projetos nas ruas. “Damos a pauta e organizamos editais.” Os muros falam, e parece não haver força que os faça parar de bradar contra as injustiças.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920