Depois de uma vida inteira de espera, Charles, o príncipe de Gales, enfim pousou o muito bem tratado pé no último degrau para o trono do Reino Unido. Por mais agourento que soe, o fato é que sua mãe, a rainha Elizabeth II, tem 96 anos, passa por problemas de saúde comuns na sua idade e, inimaginável até pouco tempo atrás, tem faltado a compromissos de alta visibilidade — e despachado Charles no seu lugar. O mais vistoso deles foi a abertura da nova sessão do Parlamento, em que o herdeiro leu o discurso que a mãe faria, sentado no trono, tendo ao lado uma mesinha com a coroa real (nada como a realeza britânica para reforçar símbolos).
O príncipe, de 73 anos, tinha 3 quando sua mãe se tornou rainha e passou as sete décadas seguintes aguardando sua vez. Nesse longuíssimo treinamento, solidificou a imagem nada brilhante de sujeito paparicado, simpático e meio ingênuo, dado a conversar com plantas e capaz de trair publicamente a mãe de seus filhos. Cabe agora aos “homens de terno cinza”, como são chamados os funcionários graduados do Palácio de Buckingham, espremer, polir e reformatar Charles de maneira que passe a ser visto pelos súditos não mais como herdeiro, mas como rei. Têm bastante trabalho pela frente.
Para mal dos seus pecados, Charles chega à beira do trono mergulhado em um escândalo: a revelação de que recebeu 3 milhões de euros, em dinheiro vivo, de Hamad bin Jassim bin Jaber Al-Thani, da família real do Catar — generosas doações do xeque a entidades filantrópicas patrocinadas pelo príncipe. Em três encontros entre 2011 e 2015, maços de 500 euros passaram da mão de um para outro, dentro de maletas e, uma vez, de sacolas da Fortnum & Mason, loja de luxo que fornece chá e mantimentos para a família real britânica. Charles, ao que tudo indica, repassava imediatamente a dinheirama para assessores, que contavam as notas e as encaminhavam para os devidos bancos.
Doações em dinheiro vivo não são proibidas e ninguém acha que Charles embolsou a bolada, até porque não precisa disso, mas resta a dúvida sobre as reais (aqui, em vários sentidos) intenções de Al-Thani. “A questão fundamental é saber se o acesso ao herdeiro do trono pode ser comprado e com qual propósito”, diz Craig Prescott, advogado especialista em monarquia. Antes dessas doações, a fundação de Charles já vinha sendo investigada por ter aceito contribuições de um príncipe saudita posteriormente condecorado com títulos da nobreza britânica. E, depois das revelações sobre o xeque, soube-se que um empresário bilionário, David Brownlow — o mesmo que deu uma ajuda para Boris Johnson reformar de cima a baixo a ala residencial de 10 Downing Street (leia mais sobre a renúncia de Johnson na pág. 48) e se propunha a financiar uma casa na árvore de 150 000 libras para o pequeno Wilfred, filho de 2 anos de Johnson —, foi, ao mesmo tempo, conselheiro, doador e empreiteiro contratado em uma outra fundação do príncipe, essa na Escócia. No meio desse intenso conflito de interesses, ganhou uma comenda e o título de lorde.
As malas de dinheiro do xeque renderam uma profusão de memes e charges retratando um príncipe sem noção, tudo o que ele não precisa na antevéspera de virar rei. Estender a mão esquerda macia, de unhas polidas e anel no mindinho, para receber maços de libras confirma a impressão passada por Charles de que não sabe muito bem lidar com o mundo fora de Clarence House, onde seu dia a dia é administrado. Foi justamente tentando desfazer essa imagem e sair de debaixo do manto da mãe que ele ensaiou um estilo próprio (tudo planejado e combinado com os homens de terno, evidentemente) na reunião da Commonwealth, aliança que reúne várias ex-colônias britânicas, em Ruanda, em junho — mais uma sentida ausência de Elizabeth, comandante vitalícia da organização. “Nada pode descrever meu profundo pesar pelo sofrimento de tantos. Sigo ampliando minha compreensão do impacto duradouro da escravidão”, declarou, passando raspando em um pedido de desculpas que poderia servir de aval para indenizações e reparações exigidas com vigor cada vez maior em nações africanas e do Caribe. Em outro movimento, fez circular que considera “chocante” a deportação para a mesma Ruanda de imigrantes que entrem ilegalmente no Reino Unido — providência do governo que vem sendo criticada mundo afora.
Não foi a primeira opinião política “vazada” por Charles, mas o que antes era visto como excentricidade hoje ganha contornos de rascunho do rei Charles. Antecipa-se desde já a formulação de um soberano mais vocal em questões controversas do que a mãe — que nunca, jamais expressou suas próprias opiniões. Charles, que também tem palpitado sobre questões climáticas e dado a entender que pretende enxugar o quadro de royals, estaria assim abrindo caminho para um reinado um tiquinho menos descolado do cotidiano do que o da mãe, que sempre pairou acima de seus súditos. Essa trilha poderia, de quebra, pavimentar a ascensão de William e Kate, um casal, ao que tudo indica, propenso a dar novo significado ao trono dos Windsor. Por mais arriscado que seja pôr a carruagem à frente dos cavalos, o esperado é isso: que o Charles que todo mundo já cansou de ver e de quem não se espera grande coisa dê passagem à aguardada temporada dos duques de Cambridge.
A auxiliá-lo na atual empreitada de vestir o manto de rei, Charles conta com a inesperada ajuda de Camilla, 74 anos, a amante de décadas com quem finalmente se casou em 2005. Execrada por muito tempo como a bruxa que infernizou a vida da princesa Diana, ela passou esses anos todos dentro da família real fazendo tudo certo: discreta, bem-vestida, sorriso pronto, conversa amável. Com seu jeito simples, sem firulas, e o conhecimento dos meandros da aristocracia que só quem nasceu nela tem, Camilla foi saindo do limbo aos poucos, até a consagração recente: uma carta de Elizabeth expondo o desejo de que, quando Charles subir ao trono, ela suba junto, como rainha consorte.
Parte inalienável do esforço para forjar o novo rei da Inglaterra, Camilla deixou a inércia de lado — tinha a fama de pessoa mais preguiçosa do reino — e abraçou com vigor causas como violência doméstica e estupro. “Charles teve de esperar muito e não deve ter gostado, mas para ela foi o que permitiu que aprendesse a função”, avalia o escritor e lorde Michael Dobbs, autor de House of Cards. Empacado uma vida inteira no meio do caminho para o trono, Charles vai precisar de toda a ajuda possível para virar rei de verdade. Uma lição aprendeu: promete — não diretamente, mas via Clarence House — que nunca mais vai aceitar sacolas de dinheiro.
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797