A melhor vinícola do mundo não fica na França, na Espanha ou nos Estados Unidos, mas na Argentina. A Bodega Catena Zapata alcançou o topo do ranking da World’s Best Vineyard, importante premiação que avalia tanto os vinhos produzidos em cada propriedade quanto as experiências que os visitantes encontram no local.
Parte do sucesso, é claro, vem da alta qualidade dos rótulos assinados pelo enólogo Alejandro Vigil, que cuida não apenas da Catena Zapata, mas de seu projeto pessoal, El Enemigo – que também aparece na lista, em sétimo lugar. Com enorme dedicação e amor pelo trabalho, há 22 anos vem ajudando a Catena a se consolidar como uma potência no mundo do vinho, mostrando o enorme potencial dos diferentes terroirs argentinos.
Em passagem pelo Brasil para participar do Encontro Mistral, reunião de produtores da importadora que acaba de completar 50 anos, Vigil conversou com a VEJA sobre seu trabalho na vinícola, o efeito das mudanças climáticas nos vinhedos e como a Argentina soube explorar o potencial da casta Malbec.
Confira a entrevista na íntegra a seguir.
A Catena Zapata foi eleita melhor vinícola do mundo, e seu outro projeto, El Enemigo, também está entre os 10 melhores do planeta. Qual a importância de um prêmio como esse?
O mais importante é o reconhecimento, pois ele joga luz na região, e também, para quem trabalha lá, seriamente, todos os dias. É claro que é um reconhecimento incrível para Catena e El Enemigo. E mostra que temos uma possibilidade imensa de continuar mostrando ao mundo o vinho argentino e as possibilidades de expressar os diferentes terroirs, ou terrunyos, que temos. Pessoalmente, é uma alegria enorme.
A Argentina tem investido em enoturismo e atraído muitos visitantes. Como você vê a importância de iniciativas turísticas para promover o vinho?
Temos sorte de ter embaixadores e evangelizadores que visitam a vinícola e voltam para seus países falando sobre nossos vinhos e ajudando a mostrá-los ao mundo. Eu adoro a oportunidade que o enoturismo oferece de não apenas contar como se faz vinho, mas porque fazemos os nossos vinhos.
A responsabilidade aumentou por você fazer vinhos para duas das melhores vinícolas do mundo?
Nunca senti como responsabilidade. Vinho é minha alma, meu espírito, minha forma de ver a vida. Nunca encarei como uma responsabilidade. E sim como um desafio. Estou há 22 anos na Catena Zapata, e fundamos El Enemigo em 2008. Já se passou muito tempo. Não me dei conta, mas passou. O que vejo é uma grande oportunidade de poder andar por vinhedos de 45 anos de idade e ver como evoluíram. Ou plantar um novo vinhedo, ver como ele cresce, depois poder fazer os primeiros vinhos desse vinhedo. É um processo muito lindo.
Sua visão sobre o vinho mudou ao longo desses anos?
Mudou tudo. O mais importante nessa caminhada é estar aberto à mudança. Sua essência é difícil de mudar. Carregamos a essência conosco. Mas podemos mudar a maneira como expressamos essa essência. E, nesse caso, mudar a maneira como fazemos vinho.
Qual a sua definição de terroir?
O que acontece é que há uma realidade: o lugar vai determinar as características do vinho. No fim das contas, queremos que a paisagem esteja dentro da garrafa. Mas como chegamos a essa paisagem? Há essa experiência centenária de cultivar as uvas de um lugar, de fazer mudanças no vinhedo, e acompanhar os resultados, é fundamental. E quem faz essas mudanças é o homem. Isso para mim é importante. Porque a definição tradicional diz que é a interação entre o clima, o solo e o homem. Mas a participação do ser humano é fundamental. Veja, em Mendoza temos as uvas Bonarda, Criolla, Pinot Noir e Chardonnay. Temos Borgonha, Bordeaux e Languedoc. Em 70 quilômetros. Essa experiência que vai se transmitindo de geração a geração, de ano a ano, de entender o lugar, nos harmonizando com esse lugar, essa é minha definição de terroir.
Há novos terroirs que ainda podem ser explorados na Argentina que ainda não estão sendo trabalhados agora?
Muitos dos terroirs que hoje começam a ser reconhecidos não têm mais de 30 anos. É assim que começa. Veja El Cepillo, Guallatary, Altamira, são todos muito recentes, de não mais de 35 anos. À medida que crescemos em volume, em capacidade, vamos buscando outras zonas, não apenas em Mendoza. Hoje, há viticultura em 18 das 24 províncias da Argentina. É o momento de buscar a qualidade que já sabemos que podemos atingir.
Como você explica o sucesso do Malbec na Argentina?
Temos a sorte que tanto o Malbec quanto o Cabernet Franc, outra variedade que vem mostrando bons resultados na Argentina, são muito transparentes à paisagem. O que significa isso? Que dependendo de onde forem cultivados, terão um sabor. É diferente de um cabernet sauvignon, que é plástico, tem algumas características encontradas em qualquer lugar do mundo. No caso do Malbec, não. Se cultivado em uma região de menor altitude, terá notas de violetas, com acidez, muito mais leve. Se cultivado em um local como Lunta, em Maipu, é muito mais frutado, com potência, notas de frutas negras. É interessante porque dá possibilidades infinitas inclusive ao consumidor. Ele pode não gostar de um tipo, mas encontrar as características que prefere em outro. O sucesso que temos com o Malbec é que usando a mesma variedade conseguimos abarcar gostos muito diferentes.
Há alguma desvantagem de ser tão associado a uma única variedade?
Acho que todos passam por isso. Até a França, em algum momento. Fala-se muito de Bordeaux e Borgonha, mas há muito mais. Somos novos no mundo do vinho. Velhos em nosso país, mas novos para o resto do mundo. Há vantagens e desvantagens nisso. Se trabalhamos bem a Malbec, e comunicamos bem essa variedade, já que temos tantos hectares cultivados, vejo como uma grande possibilidade.
A Cabernet Franc é outra variedade que vem mostrando bons resultados.
Em 2001, quando comecei a trabalhar mais intensamente com Cabernet Franc, percebi que aquele cultivado no vinhedo Adrianna, em Gualtallary, era totalmente diferente daquele de Agrello. Não digo melhor ou pior, porque são gostos distintos. Estudamos os terroirs e percebemos as diferenças. O que nos dá possibilidades infinitas. Também percebi que era uma boa companheira para Malbec, e creio que em algumas regiões essa mescla de cabernet franc e malbec será predominante. Mas isso no futuro. Hoje, temos apenas 3 mil hectares plantados. É muito pouco.
Mas eventualmente ela pode ser tão associada à argentina quanto Malbec.
Claro. Veja, eu trabalho muito com chardonnay. O White Bones chegou a ganhar 100 pontos pela safra 2018. Elaboramos pinot noir, também. Mas acredito que o Malbec é ponto de referência no espaço, nosso caminho a seguir, e os outros devem ser bons companheiros de viagem.
As mudanças climáticas mudaram sua maneira de fazer vinhos?
Percebi nos últimos anos que tivemos muitos fenômenos de geadas na primavera, chamadas geadas tardias, no final do ano. Nos últimos oito anos, não tivemos geadas fortes. Isso está associado à falta de umidade. Se falta umidade, eventualmente, faltará água. Estamos trabalhando para estarmos preparados para as mudanças. Temos o Catena Institute, em Catena, que trabalha com instituições do mundo, e discutimos muito tanto as mudanças climáticas quanto a sustentabilidade.
As práticas de sustentabilidade são perceptíveis nos vinhos?
Eu não percebo nenhuma diferença nos vinhos. Não sei se isso é bom ou mau. Mas é um caminho sem volta. Devemos olhar de forma permanente para a sustentabilidade social, porque sem pessoas não há vinho, e para a sustentabilidade ambiental.
O consumidor percebe essa preocupação?
Acho que ele vai percebendo. Sobretudo as gerações novas. Há muita polêmica sobre as novas gerações, mas eu vejo com bons olhos. Querem saber das coisas, como tudo é feito, de onde vem. São moderadas. Não quero que bebam quatro garrafas de uma vez. Prefiro que tomem ao longo da semana, por exemplo. Em todos os sentidos é um habito mais sustentável.
Quais são os desafios de adotar práticas mais sustentáveis?
Há 10 anos, convertemos o vinhedo Adrianna para um cultivo totalmente orgânico. E foi um trabalho muito difícil, porque esse vinhedo é muito especial, localizado em um lugar único de Gualtallary. Geologicamente é muito especial. Não está tão alto nem tão baixo, tem um depósito de calcário que não há em nenhum outro lugar da região. Nos primeiros seis anos, a produção caiu, e ficamos preocupados. Mas agora, a cada ano que passa, a produção sobe. Qualquer mudança provoca uma crise, mas depois um resultado. Neste ano, chegamos a quase mil hectares orgânicos, além de termos certificações sustentáveis na Argentina.
Você vem em eventos, participa de feiras, está em contato com os consumidores. É algo que você faz questão de fazer?
Entendo que é parte de nosso trabalho. Temos que explicar o que estamos fazendo. Mas vou além. Creio que deveria ser um pensamento global, não apenas meu. Para nós, fazer vinho não é fazer um produto. Muitos dizem: “que belo produto vocês têm”. Eu olho e não entendo. Isso é vinho, não é um produto. É minha vida, sabe? Quando me pedem para assinar uma garrafa, digo que parte da minha alma e do meu espírito estão ali.
Os consumidores adoram.
Sim, eu sempre busquei estar em contato com eles. Há muitos anos abri minha conta no Twitter. Na época, fui muito criticado. Hoje, todos os produtores estão lá. Depois, veio o Instagram. É uma conexão permanente. Encontro pessoas que dizem que me viram fazendo isso ou aquilo por causa do Instagram. Eu acho muito interessante.
Quais são os vinhos que você mais gosta de fazer?
Gosto muito de tudo que fazemos em Gualtallary. Quando comecei, vinha de uma instituição como a Embrapa, chamada Inta. Trabalhava com solo, geologia e viticultura. É interessante ver que em 26 anos, fizemos caracterizações do solo, analisamos as raízes desse vinhedo. E quando olhamos as calicatas (escavações feitas para análise do terreno), percebemos a evolução. E vemos as mudanças e a evolução no vinho. Antes, eles tinham potência, porque as raízes não estavam tão profundas. Agora que as raízes estão em um solo calcário com granito, os vinhos estão muito mais finos e elegantes.
Você percebe uma mudança na maneira como as pessoas se relacionam com o vinho? É um fenômeno global?
Sim, é um fenômeno global. As pessoas estão interessadas naquilo que é artesanal. E fazer vinho é um processo artesanal. Quando o vinho começar a ser feito por inteligência artificial, perderá seu valor. Porque não é possível reproduzir o estado de ânimo de quem faz a bebida. E o que se passa em cada instante. Bem como a paisagem. Cada um se atenta a um detalhe específico, e tudo isso se transmite ao vinho. É algo que a inteligência artificial não pode replicar. Acredito que tudo aquilo que é real, concreto, transparente e artesanal terá ainda mais valor.