No mundo corporativo, reputações são construídas e desfeitas o tempo todo, num ciclo de altos e baixos que parece não ter fim. A regra, porém, não se aplica à relojoaria suíça. Nesse caso, a boa imagem persiste por séculos. Exagero? Nem um pouco. A Patek Philippe foi fundada em 1851 e jamais perdeu o brilho. Sua rival, a também icônica Audemars Piguet, é de 1875. Mais jovem, a Rolex nasceu em 1905 e desde então se manteve como um símbolo irresistível de status. Ao longo da história, comprar peças de grifes como essas exigia ter os contatos certos — nem sempre bastava deslocar-se a uma loja — e, claro, muito dinheiro. Agora, na nova era do consumo, as facilidades permitem que os simples mortais sonhem com relógios estrelados, mas com uma diferença: são peças de segunda mão.
O mercado mudou à medida que as novas gerações de jovens adultos passaram a conquistar a independência financeira e a olhar para o segmento de alta sofisticação. Menos preocupados com o estigma de possuir objetos usados e mais interessados naquilo que os especialistas chamam de “experiências”, eles descobriam os prazeres do universo do luxo. Uma pesquisa da consultoria Deloitte sobre a relojoaria suíça revela que houve um acréscimo de compradores que dizem buscar relógios de segunda mão. A parcela formada pela geração Y e pelos millennials, entre 20 e 40 anos, é a mais propensa (42%) a navegar pelo mercado de usados. Com isso, sites como o Chrono24, sediado na Alemanha, se tornaram potências do segmento. Enquanto as vendas de novos relógios de pulso crescem 3% ao ano, a plataforma viu a demanda aumentar 10%, de acordo com levantamento feito pela consultoria McKinsey. No primeiro trimestre de 2022, o valor das transações cresceu 40% em relação ao mesmo período do ano passado.
O principal motivo que atrai compradores, tanto homens quanto mulheres, é o preço. Como não poderia deixar de ser, as plataformas de relógios usados vendem produtos em perfeito estado, mas com alguma vida pregressa, por valores mais em conta. Além disso, a oportunidade de achar modelos descontinuados ou adquirir relógios com fins de investimento e posterior valorização são outros fatores que impulsionam o mercado. A profissionalização do segmento de usados também é uma forma de combate à falsificação. Nos sites de revenda, os clientes recebem certificados que comprovam a origem das joias, num processo parecido com o universo das artes. Trata-se de uma medida providencial: estima-se que as vendas de relógios adulterados causem prejuízos anuais de ao menos 10 bilhões de dólares por ano.
O movimento não passa despercebido pela indústria. Segundo levantamento da Deloitte, 65% dos executivos de grandes marcas suíças entrevistados afirmaram estar desenvolvendo estratégias para o mercado de usados. “É uma forma de acompanhar o produto ao longo de todo o ciclo de vida”, afirma Cristina Proença, professora da pós-graduação de negócios e marketing de luxo contemporâneo da ESPM. “As marcas já têm o domínio completo da experiência de compra até o lançamento. Faz sentido que elas estejam presentes também no segmento de segunda mão.” Não à toa, a Chrono24 recebeu investimentos do braço de inovação do conglomerado de luxo LVMH, dono de marcas como Hublot e TAG Heuer, e já vislumbra a abertura de capital.
A perspectiva é positiva. Segundo especialistas do ramo, o colapso dos criptoativos, por exemplo, fez com que muitos investidores que enriqueceram à custa de bitcoins tivessem de se desfazer de alguns itens de luxo, começando pelos relógios. O resultado é uma estabilização dos preços após o frenesi que fez com que modelos como o Nautilus 5711/1A, da Patek Philippe, saltassem de 35 000 dólares para mais de 240 000. O crescimento do mercado asiático, principalmente o chinês, também anima a indústria. Garimpar raridades — e pagar menos por elas — nunca foi tão fácil.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806