Lá atrás, há coisa de 25 000 anos, o padrão cultuado de forma física era o da célebre Vênus de Willendorf, com suas generosas medidas, raridade numa era em que a fome grassava. A escultura de barro do período paleolítico, achada na cidade austríaca que lhe empresta o nome e hoje exposta no Museu de História Natural de Viena, serve de lembrete para as intensas voltas que o mundo dá. Com a industrialização em marcha no século XIX, o alimento começou a ser produzido em escala, a população de silhuetas avantajadas avançou e magreza deixou de ser sinônimo de fraqueza para ganhar o status de beleza. Dizia-se que os mais fininhos tinham, em plena era fabril, mais força para o trabalho. O tempo passou, e o que é agora enfaticamente reconhecido como belo são os corpos esguios — um movimento acompanhado da rejeição à turma acima do peso, que se cristalizou sob o moderno nome de gordofobia.
Numa era em que outras modalidades de preconceito são menos toleradas e até criminalizadas, esta resiste sob o álibi de que é tudo piada. Para quem é alvo delas, não é, definitivamente. Uma nova pesquisa da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia mostra que 85% dos obesos no país (que representam uma de cada cinco pessoas) já sofreram algum constrangimento pelos quilos a mais. E a artilharia se volta especialmente contra adolescentes, a maior parte meninas, justo quando a autoestima está se sedimentando: 53% de uma vasta amostra ouvida em um levantamento publicado no Journal Pediatric Psychology se veem na mira da intolerância. “Os estereótipos sobre as pessoas gordas aparecem claramente: todas elas são vistas como preguiçosas, desmotivadas e desleixadas, mesmo que fatores genéticos e outros distúrbios possam ser decisivos para essa condição”, observa a especialista Rebecca Puhl, autora do estudo.
Enquanto nas últimas décadas o mundo assistiu à evolução no combate ao racismo, ao machismo e à homofobia — que não são mais digeridos como antes e preveem punição —, atacar os rechonchudos apenas agora passa a preocupar um governo aqui, outro ali. Na Espanha, onde as praias fervilham neste verão sob temperaturas como nunca antes, uma campanha empunha a bandeira de que nem só as sílfides têm espaço nas areias. “Todos os corpos cabem na praia”, prega o Ministério da Igualdade. No Brasil, a prefeitura do Recife baixou uma lei que protege pessoas acima do peso em instituições de ensino públicas e privadas, fornecendo-lhes carteiras adequadas e, mais do que isso, incentivando que a rejeição a elas seja um capítulo do currículo. Em dezembro, foi a vez de Rondônia criar canais para denúncia de casos de constrangimento ou ofensa relacionados ao peso corporal.
O pioneirismo nessa área vem dos Estados Unidos, onde o estado de Michigan pune, desde 1976, quem ferir em algum grau a população acima do peso — teor semelhante ao de projetos que tramitam em Nova York e Massachusetts. Na década seguinte, o genial Jô Soares, morto na semana passada, trazia com humor fino e a capacidade de rir de si mesmo o assunto à mesa, ajudando a cutucar o tabu no programa da TV Globo que encabeçava, o Viva o Gordo. Só nestes dias, porém, com o impulso das céleres redes (as mesmas que enaltecem as medidas miúdas), o tema ganha vulto e vai deixando o escaninho das questões impronunciáveis para quem se vê na mira. Um termômetro é a hashtag “corpo livre”, mencionada mais de 700 000 vezes.
Os especialistas sublinham a relevância do grito de liberdade diante da camisa de força da magreza. Mas que fique claro: a obesidade é uma epidemia global e o sobrepeso, registrado por 57% dos brasileiros, exige olhos vigilantes sobre os indicadores da boa saúde. “Trata-se de uma questão séria, mas a rejeição e o desrespeito só atrapalham, podendo se desdobrar em males psicológicos e distúrbios alimentares”, alerta o endocrinologista André Vianna. Ocorreu com a modelo plus size Gabrielle Paula, 22 anos, que, alvejada, encarou dietas em série. “Fazia apenas uma refeição por dia e evitava eventos sociais para não cair em tentação”, conta. Chegou a perder 30 quilos, mas logo vieram crises de ansiedade e compulsão alimentar — e o peso subiu. “Hoje meu foco é fazer atividades físicas e comer com equilíbrio para ter qualidade de vida”, diz ela, acima do peso, mas com os exames clínicos satisfatórios.
Há faces menos visíveis, porém assustadoras, do preconceito. Um estudo conduzido por uma pesquisadora da Universidade Yale, na Europa e nos Estados Unidos, aponta que um de cada três pacientes com quilos a mais relata ter sido alvo de gordofobia em clínicas e hospitais. É comum médicos diagnosticarem que seu problema tem raízes no peso excessivo, mesmo quando, objetivamente, os sintomas não corroboram com isso. Em meio à maré de rejeições variadas, figuras como a de Caio Revela, 34 anos, que prefere não divulgar o peso “porque isso não importa”, lideram campanha nas redes contra as gracinhas das quais não riem. “Não romantizo a obesidade, mas exijo respeito”, afirma. Que a nuvem de intolerância que paira sobre ele e tantos mundo afora seja de uma vez por todas dissipada.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802