Desde tempos remotos, as pessoas buscam maneiras de deixar sua memória eternizada, seja na forma de escritos, seja na de imagens que ajudam a recontar sua história. Nesse campo, a fotografia representou um salto extraordinário, caindo no gosto de círculos a princípio mais abastados, que passaram a cultivar o hábito de montar álbuns com retratos de família em meados do século XIX. Foi aí que bebês rechonchudos, sempre muito bem-vestidos, começaram a ser clicados e orgulhosamente exibidos em grupos conhecidos. Ninguém diria que o hábito, antes circunscrito às fronteiras do razoável, extrapolaria o ambiente de parentes e amigos para aportar na escala planetária das redes sociais, terreno fértil para um mundo de exageros. Agora, pais compartilham ali o passo a passo dos filhos em contas que levam até o nome do neném e, repletas de frases em tom infantil, brincam de reproduzir o que estariam pensando — isso quando uma parcela deles apenas mama, chora e dorme.
Expor sob os holofotes virtuais as peripécias da prole passa a ser um problema quando a prática se torna excessiva, resvalando em um fenômeno que ganhou inclusive nome em inglês: oversharenting (algo como abusar do compartilhamento de informações sobre a criação dos filhos). Manter uma conta como se fosse ele, o pequeno ser em formação, o dono do perfil é a face extrema desse padrão de comportamento, que se torna cada vez mais visível no universo sem freios das redes. No Brasil, a hashtag #bebêsdotiktok já contabiliza 825 milhões de visualizações. A agência britânica Ofcom foi mais longe e chegou a um número espantoso no Reino Unido: 25% dos que têm 3 anos de idade já possuem conta própria — dado obtido entrevistando os progenitores, seus verdadeiros autores. Isso, aliás, contraria a regra das redes, segundo a qual é recomendado ter completado pelo menos 13 anos para encabeçar um perfil.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou um relatório em que cutuca o tão candente vespeiro. “Os responsáveis não devem postar seus sentimentos como se fossem os do bebê. À medida que a criança cresce, terá consciência daquilo e pode não se identificar com a personalidade ali projetada, gerando confusão na fase de desenvolvimento”, pondera a médica Evelyn Eisenstein, à frente do documento. A maioria dos pais que embarca nas postagens em série está cheia de boas intenções e recebe altas doses de afeto ao mostrar à plateia on-line as conquistas dos rebentos num período em que elas são diárias. Desde a gravidez, Carina Barbieri, 36 anos, se dedica ao Diário da Cecília, que hoje tem 2 anos e já viralizou, para surpresa da mamãe, que só queria dividir com “titios e titias”, como diz, o cotidiano de progressos da menina. O maior sucesso veio com um filmete sobre a introdução de frutas no menu de Cecília. Logo depois, o perfil alcançou mais de 500 000 de seguidores entre Instagram e TikTok, e Carina conta ter redobrado os cuidados com a ultraexposição. “Tenho consciência do que postar, de modo a não afetar minha filha futuramente”, garante.
Há muita gente, porém, que nem se preocupa em parar para refletir, compondo o crescente grupo dos sem-noção. “O que muitas vezes se observa é o uso da imagem dos filhos para despertar admiração para si mesmo, num movimento claramente narcisista”, avalia a psicóloga Renata Soares. Ao exibir as gracinhas da prole ainda miúda, os pais não devem esquecer que aquele conteúdo não se apaga tão fácil e que, a depender do teor, periga mais tarde se tornar fonte de constrangimento para os já crescidos. No combate ao sharenting, o Comitê Gestor da Internet no Brasil lançou o Guia Internet Segura para Seus Filhos, onde se encontra o capítulo “Não seja você o vilão”. “A criança deve ter o direito de construir ela própria o seu espaço nas redes, conforme vai amadurecendo e formando sua personalidade”, reforça a analista de segurança Miriam von Zuben, envolvida na produção da cartilha.
No afã de exibir às pessoas as qualidades do filho, o adulto que se põe a postar sem travas pode acabar atropelando regras elementares de privacidade. Um levantamento da empresa americana Security.org indica que 75% dos pais mundo afora publicam informações muito particulares das crianças, um dado impressionante que se soma a outro — apenas 20% deles protegem o nome dos pequenos. Como se sabe, nas mãos de gente mal-intencionada, posts assim podem alimentar crimes os mais variados, a começar pelo cyberbullying e podendo desembocar até na pedofilia.
A experiência vai ensinando a alguns a medida adequada do quanto expor. Era 2019 quando a auxiliar administrativa Amanda Barros iniciou um perfil aberto para a filha Sophia, de 3 anos. Com o tempo, entendeu que não fazia sentido compartilhar momentos íntimos da criança com desconhecidos. “Há seis meses, excluí todos eles”, relata Amanda, que, como outras mães, vê o lado bom de repartir dores e alegrias da maternidade. Se usadas com moderação, essas contas podem até se tornar palco para troca de ideias e conselhos nessa sinuosa jornada que é a criação de filhos. “Às vezes, se formam ali redes de apoio que ajudam a todos”, observa a psicóloga Renata Soares. Isso, ressalte-se, se os seres no início da existência não tiverem as portas de sua privacidade escancaradas. Como em tantos escaninhos da vida, o xis da questão está em jamais ultrapassar os limites da razão.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853