Traduz-se a história da civilização pelo modo como as pessoas se vestiram ao longo dos séculos. “Moda é linguagem espontânea”, disse, certa vez, a estilista italiana Miuccia Prada, designer da grife que leva o sobrenome de sua família e criadora da subsidiária Miu Miu. A espontaneidade a que ela se refere — nem sempre natural, muitas vezes calculada — ecoa nas redes sociais com velocidade indizível. Quem está no jogo aparece. Quem não está tende ao limbo, numa verdade inconveniente. É o que desponta na mais recente versão do ranking The Lyst, o mais cobiçado do ramo, querido e odiado.
O termômetro elege as marcas mais desejadas de acordo com as buscas e o engajamento na internet associado às vendas de cada trimestre. É tratado como o “Billboard fashion”, referência ao mítico levantamento da indústria musical. Houve surpresas, e elas têm tudo a ver com a voracidade do Instagram, TikTok etc., etc. O primeiríssimo lugar ficou com a espanhola Loewe, do grupo LVMH, companhia espanhola criada em 1846, preferida da realeza desde 1905, quando o monarca Alfonso XIII nomeou o fundador Heinrich Loewe Rössberg como o designer oficial da casa real. O segundo posto ficou com a Prada. O bronze, com a Versace. Um susto: a Nike desponta em honrosa posição 18. Há um ponto a unir as três empresas, para além do pedigree: o esforço para mantê-las sempre iluminadas no mundo frenético e incansável das postagens, sem parar.
Os controladores da Loewe, que não são bobos nem nada, apostaram nos looks exclusivos da última turnê da cantora Beyoncé, como o bustiê de ares cibernéticos impresso em 3D e o macacão brilhante com mãos sinuosas que passavam pelo corpo da estrela. É obra do talentoso JW Anderson — que também aparece na 20ª posição, com sua marca homônima —, um dos estilistas mais criativos de sua geração, disposto a casar o novo com o antigo e parecer moderno. Fazem muito sucesso, e movimentam a caixa registradora, também as bolsas de ráfia e a regata branca com anagrama usada pela top model Kylie Jenner, influencer escolada. Não por acaso, as vendas cresceram 33% de 2022 para cá. A vice-campeã, a Prada, é outra que não para de navegar no éter. No caso da Nike, a bem-sucedida colocação é atribuída ao fenômeno da linha Air Jordan, potencializada em 2023 pelo filme Air — A História por Trás do Logo, de Ben Affleck. Sozinha, ela arrecadou 5,1 bilhões de dólares.
Resumo da ópera nas passarelas e tapetes vermelhos, e dali para as lojas e armários: é fundamental bater o bumbo eletrônico, fazer e ser visto — é constatação que soa banal, mas convém tê-la como prioridade. Basta ver, no avesso do que deve acontecer, a trajetória de uma lenda, a Chanel, que desapareceu sem pompa nem circunstância do topo do rol da The Lyst. Ainda que seja uma referência incontornável em matéria de estilo e absurdamente valiosa, a marca francesa (avaliada em 53 bilhões de dólares) tem perdido um pouco de popularidade. É chama que a maison vem apagando ano a ano desde a morte do estilista Karl Lagerfeld, em 2019. De acordo com a The Lyst, a timidez no varejo digital a excluiu do páreo, com a nítida sensação de não agradar aos jovens, por não ser estrela de selfies e stories, como manda o novíssimo figurino, goste-se ou não dele.
E há uma agravante: a atual diretora criativa da Chanel, Virginie Viard, errou a mão. “Viard, que é realmente muito apagada, tem uma missão difícil, preservar um legado brilhante e, ao mesmo tempo, continuar respondendo às demandas comerciais”, diz o consultor de moda Alexandre Schnabl. Um conselho, extraído da mente provocativa da própria Coco Chanel (1883-1971), que faria um estardalhaço daqueles em tempos de internet: “Uma moda que não chega às ruas não é moda”. E para se espalhar, no século XXI, é preciso dar as mãos à ágora de nosso tempo, as redes sociais. Não tem outro jeito. Os smartphones representam a vitrine de uma época plugada e vaidosa.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853