No seminal O Segundo Sexo, livro de 1949, a filósofa francesa Simone de Beauvoir redefiniu o feminismo — ou talvez tenha ajudado a inaugurá-lo — ao afirmar que os símbolos sociais conferidos ao corpo da mulher determinam sua relação com o mundo. “O corpo não é uma coisa, é uma situação”, escreveu. “Sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra”, argumentou. A ideia se desdobra em reflexões sobre o domínio patriarcal ao longo da história, sustentado na maneira pela qual as formas femininas foram e são apreendidas, para usar o raciocínio de Simone, sempre condicionadas a estereótipos e à pressão para que as mulheres a eles se encaixem.
As ideias de Simone, ruidosas a seu tempo, iluminaram pela primeira vez o processo por meio do qual a opressão masculina se ampara no significado atribuído à silhueta feminina. Mais de setenta anos depois daquele trovão, ainda há muito o que avançar para quebrar a corrente que aprisiona a existência da mulher ao que representa seu corpo. Contudo, há bons sinais no horizonte. Um deles é o movimento crescente de jovens que decidem retirar próteses de silicone implantadas quando eram obrigatórias — sim, obrigatórias — para que se alcançasse o padrão de beleza imposto, de celebração de formas mais volumosas. A nova atitude tem valor excepcional e merece ser comemorada. De maneira inédita, as mulheres dizem não a padrões. É a suprema aceitação do corpo como ele é, e não como deveria ser para que o trânsito no mundo seja mais suave. A esse fenômeno pode-se dar o nome de poder.
O movimento é mundial. De acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps), os procedimentos para retirada de próteses de silicone subiram de 169 000, em 2017, para 206 000, em 2020, último dado disponível. Os Estados Unidos continuam com números expressivos de implantes, porém, experimentam o aumento de remoções. Enquanto há cinco anos foram contabilizadas 44 000 extrações, em 2020 elas chegaram a cerca de 50 000. No Brasil, a retirada teve aumento de 92% em 2020, em comparação a 2017. Há dois anos, houve 25 000 operações. Em 2017, 13 000.
O que se observa nessa virada é a solidez do propósito. Não se trata de uma onda do estilo daquelas que varrem a moda e depois desaparecem, como a dos vestidos naked dress (leia mais na pág. 78). As mulheres que agora procuram as clínicas para tirar o silicone mostram-se seguras do que desejam, diferentemente do que aconteceu até agora, quando as modificações eram mais resultado de pressão cultural do que outra coisa. Os seios, particularmente, sempre estiveram na linha de atenção. Sagrados e profanos, é deles que jorra o leite que alimenta os bebês e é sobre eles que se concentra parte das fantasias masculinas.
Durante séculos, tudo isso se misturou, ora pendendo para um lado, ora para outro. As musas do Renascimento, movimento ocorrido entre os séculos XIV e XVI que resgatou a figura do ser humano como expressão da perfeição, por exemplo, são retratadas com seus seios pequenos, como pode ser apreciado no magnífico A Bela Jardineira, de Rafael. Três séculos depois, na era Vitoriana, como ficou conhecido o período do reinado da rainha Vitória, na Inglaterra, no século XIX, o belo, para uma mulher, era ter pele branca, pálida e seios volumosos. Buscava-se o retorno ao ideal romântico. Os peitos fartos lembravam a nobreza da amamentação, a mais alta função à qual as mulheres estariam destinadas, além de gerar, parir e criar filhos. Foi a partir do século XX que as mudanças passaram a ser mais frequentes. Na década de 40, enquanto parte das mulheres saía de casa para trabalhar em substituição aos maridos que combatiam na II Guerra, aquelas que serviam como referência estética ganhavam projeção ao desfilar pelo mundo lembrando os soldados que, após o horror dos combates, a sensualidade estaria logo ali, simbolizada pelos seios fartos, dessa vez transformados em pontos de pura sedução.
O primeiro implante de silicone foi feito em 1962, nos Estados Unidos, ainda no rastro da conceituação de que os seios deveriam ser imponentes para agradar aos olhos masculinos. Foi nos anos 1990, contudo, que a pressão se intensificou de tal forma que mulheres com menos de 200 mililitros de silicone no peito estavam fora do arquétipo. No entanto, o fortalecimento dos movimentos femininos dos últimos vinte anos mudou tudo. A ascensão da geração Z, nascida da metade dos anos 90 para cá, e seu compromisso com a autenticidade de corpos e gêneros, está abrindo às mulheres a janela pela qual cada uma pode encontrar a liberdade de mexer — ou não — no corpo. Muitas, como se depreende dos números da Isaps, estão entendendo ser mais prazeroso viver com as formas naturais.
Entre elas estão a atriz Giovanna Antonelli, que retirou sua prótese também porque causara desconfortos físicos, e a modelo Fiorella Mattheis. “Há um movimento de assumir o corpo, mesmo com a maior exposição nas redes sociais”, diz Carolina Ambrogini, da Universidade Federal de São Paulo. As mulheres, enfim, querem fugir da padronização. “Uma paciente que pôs a prótese com 20 anos não é a mesma pessoa aos 35, ela pode querer mudar”, diz o cirurgião plástico Fernando Amato, membro da Isaps. Há, é claro, razões médicas para a retirada. Existem problemas como a síndrome autoimune induzida por adjuvantes, responsável por episódios de dores articulares e queda de cabelo. Mas são as razões comportamentais, inegavelmente, o grande motor que estimula as mulheres a experimentar a liberdade de viver com os seios que têm.
Ao sabor da moda
Até hoje, o tamanho dos seios era em boa parte determinado pelas pressões sociais
Anos 50
Marilyn Monroe Seios volumosos eram símbolo de sedução no pós-guerra
Anos 80
Luiza Brunet Ícone da onda de peitos pequenos como fonte de atração
Anos 90
Pamela Anderson A loira abriu a era da linha quanto maior, melhor
Anos 2010
Kim Kardashian Consumidora de tudo o que for moda, a influencer ainda exibe as próteses
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803