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O mundo está cada vez mais rico e mais desigual, diz Domenico de Masi

Sociólogo italiano, conhecido por defender e propagar a teoria do ócio criativo, lança livro sobre trabalho na sociedade pós-industrial

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 15 jul 2022, 02h00
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  • Aos 84 anos, Domenico De Masi está lançando no Brasil O Trabalho no Século XXI: Fadiga, Ócio e Criatividade na Sociedade Pós-Industrial (Sextante). O livro reúne o legado intelectual do sociólogo, conhecido por defender e propagar a teoria do ócio criativo. Com mais de 60 anos de carreira dedicada aos estudos das relações de trabalho, ele resgata as teorias e pensamentos sobre o emprego, desde os gregos até os tempos atuais. E mostra que, apesar de toda a evolução em tecnologia, seguimos, como nunca, escravos do sistema. Quando se esperava que a modernidade nos traria mais tempo livre, acabou nos tornando cada vez mais dependentes do trabalho.

    De Masi aponta as evoluções e as mazelas da sociedade pós-industrial, baseada principalmente na produção de bens imateriais e marcada pelo signo da tecnologia. Ao mesmo tempo que vê vantagens no uso da realidade virtual e da inteligência artificial, condena o uso dela para precarizar relações de trabalho. E diz que os grandes problemas do mundo moderno estão nas ameaças ecológicas e nucleares. O intelectual continua apaixonado pelo Brasil, que considera o melhor país do mundo. “É um lugar onde se ri como em nenhum outro”, diz ele. “Esse humanismo, que é corporal e sensual, não tem paralelo no mundo.”

    A seguir, os principais trechos da entrevista, que foi editada para melhor compreensão.

    Diante de uma bibliografia relacionada ao trabalho tão vasta como a sua, pode-se considerar “O Trabalho no século XXI” como uma espécie de testamento?

    Um testamento é um pouco lúgubre. (Risos.) Além disso, como napolitano que sou, a superstição me acompanha. Claro que, com 84 anos, um pouco do meu legado está no livro. Ele foi escrito depois de muitos outros sobre trabalho. foram pelo menos uns dez, como Desenvolvimento Sem Trabalho, O Futuro do Trabalho e A Economia do Ócio. Este, de alguma forma, é uma síntese daquilo que sei. Mais do que aquilo que escrevi, não sei.

    Como poderia resumir, então, a evolução do trabalho?

    Tivemos três grandes ciclos históricos. Um longo período, de muitos milhares de anos, no qual as atividades eram principalmente agricultura e artesanato. Para a maior parte das pessoas, o trabalho era indigno dos seres humanos. Por isso, era delegado aos animais e escravos. No final do século XVIII, as relações entre o homem e o trabalho mudam completamente. Da metade do século XVIII até a metade do século XX, a sociedade industrial é organizada em torno da produção em escala de bens materiais. Chega a Segunda Guerra Mundial, e entramos nela como sociedade pós-industrial. É centrada na produção de bens imateriais: os serviços, as informações, os símbolos, os valores, a estéticas.

    Essa é uma sociedade ainda em transformação, certo?

    As transformações que aconteceram com a chegada da sociedade pós-industrial foram numerosas. O que se torna central é a produção imaterial. Depois, tornam-se mais importantes, ao lado das tecnologias mecânicas e das tecnologias eletromecânicas, as tecnologias digitais e a inteligência artificial. A tecnologia digital consiste em globalizar e desestruturar o tempo e o espaço. Pela primeira vez, é possível fazer o que estamos fazendo – uma entrevista por meio de chamada de vídeo. A primeira entrevista que dei para VEJA, nas Páginas Amarelas, foi feita pessoalmente. Tiveram que mandar uma repórter aqui para a minha casa, em Roma.

    Como ficaram as relações de trabalho?

    A nuvem informática transformou o mundo inteiro em uma grande praça. Podemos teletrabalhar, aprender a distância, nos divertir remotamente e até amar dessa forma. O projeto de privacidade quase desapareceu. Ficou quase impossível esquecer, se perder, se entediar… São funções que exercitamos por milênios e não conseguimos mais fazer. O mundo cresce 5% ao ano. Mas essa riqueza cai na mão de poucos.

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    E o papel das mulheres na força de trabalho?

    A feminilização é um ponto importantíssimo. Hoje, quase 50% das mulheres são diplomadas. E a mesma cifra tem um mestrado. Elas estão mais na centralidade do sistema, e os valores femininos, a estética, a sociabilidade, a flexibilidade, se tornaram quase os nossos valores masculinos. Françoise Giroud, fundadora da revista L’Express, na França, dizia: “A igualdade entre os sexos será alcançada verdadeiramente apenas quando uma mulher medíocre puder se tornar presidente de um banco”. E até isso conseguimos, pelo menos na Itália.

    Como a pandemia afetou as relações de trabalho?

    Em primeiro lugar, a pandemia matou muita gente. Milhares de pessoas morreram, muitas delas idosas, que detinham o monopólio da memória. Uma das coisas que entendemos melhor agora: o mundo é globalizado de verdade. Um vírus que aparece na China, poucas semanas depois está em Milão, e depois em Paris, em Nova York e no Rio. E também começamos a diferenciar melhor o que é necessário do que é supérfluo. Percebemos que o consumismo é errado. Tanto é verdade, que muitas pessoas estão abandonando o trabalho, porque preferem viver pobres, mas com plena liberdade, do que viver ricas, mas sem liberdade. E aprendemos que, com desgraças como a pandemia, aumentam as desigualdades. Somos iguais diante da morte, mas quem sobrevive é desigual.

    Quem sofreu mais?

    Os mais velhos, os solteiros, os clandestinos e os sem-teto. E aprendemos que o estado é necessário. É preciso ter um gabinete central que gere com inteligência tudo que acontece. Eu tive a impressão que o estado agiu melhor aqui do que no Brasil. E aprendemos que é importante a saúde pública. Todos foram curados, ricos e pobres.

    E em termos de economia, como estamos evoluindo?

    Na economia, as desigualdades são crescentes. Em 2010, as 388 pessoas mais ricas do mundo acumulavam mais da metade da riqueza da humanidade – tinham o mesmo patrimônio que 3,5 bilhões de pessoas. Hoje, de um lado da balança não há mais 388 pessoas, mas apenas oito. As oito pessoas mais ricas do mundo têm a mesma riqueza de mais da metade da humanidade. Estamos na presença de uma diferença jamais vista. Porque triunfou a economia neoliberal, baseada no mercado, na concorrência, na redução do papel do estado. A pandemia acentuou as diferenças, mas elas existiam antes.

    A tecnologia trouxe o trabalho autônomo, com aplicativos como Uber, iFood, Rappi e outros. De que forma acha que isso mudou a relação de trabalho?

    Isso é a economia neoliberal atuando, porque se baseia na precariedade e na difusão do risco. Ou seja, cada cidadão deve se arriscar e ter um trabalho não definitivo. É uma grande exploração do trabalho. Na forma industrial, era ter os trabalhadores 18 horas por dia trancados na fábrica. Na fase pós-industrial, a exploração é essa. Esses trabalhadores não são analfabetos, muitas vezes são diplomados, mas são obrigados pelo mercado a se submeter a condições degradantes. Onde há uma grande riqueza, há também exploração. Não sou eu quem diz isso, é Voltaire. Não foi nem [Karl] Marx.

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    Smart working, ou trabalho inteligente, está relacionado ao teletrabalho. Como avalia o crescimento dessa tendência que, com a pandemia, veio para ficar?

    Com o smart working, tenho uma série de vantagens que no escritório não tinha. Nem todos os trabalhos podem ser feitos assim. Um barbeiro ou um cirurgião não pode fazer isso. Mas proporciona uma economia energética incrível. Evitar poluição, evita acidentes automobilístico. Portanto, as vantagens são enormes, sobretudo por causa da sociedade, da poluição e das despesas inúteis. Agora, depois das férias, devemos aumentar o smart working, porque temos menos gás que vem da Rússia.

    A tecnologia, então, tem seus prós e contras. É isso?

    Naturalmente, ter uma tecnologia não significa usá-la de modo inteligente. Esse é o problema do mundo todo. Mas seguramente é melhor assim do que se não houvesse. É um progresso enorme, em relação ao passado. Durante o lockdown, na pandemia, a internet foi muito útil. Naturalmente, há as desvantagens.

    E a Guerra da Ucrânia, como avalia o que está acontecendo?

    Tivemos a Guerra Fria, durante a qual se formou a Otan. Quando acabou, essa força deveria ter sido eliminada. Ao contrário, foi reforçada. Eram doze países, agora são 30. Não estamos preparados para a paz. Com o orçamento de uma ogiva nuclear, é possível construir 20 hospitais. Uma! É só fazer as contas. Vivemos sentados em um vulcão, fingindo estar tranquilos.

    Esse é o único problema?

    Temos duas grandes problemas, a ameaça ecológica e a ameaça nuclear. Esses dois problemas tendem a destruir o planeta. E não podemos vencer um sem eliminar o outro. Porque se paramos de produzir armas nucleares e destruímos aquelas que existem, com tudo o que custam, podemos resolver o problema ecológico. A minha grande missão, até morrer, é me dedicar a isso: deslocar todos os fundos e dinheiro usados na produção nuclear para a defesa do meio ambiente. Creio que é necessário tentar.

    O senhor é otimista?

    Sim. Porque não vivemos no melhor dos mundos possíveis. Eu e você, se nos pusermos a pensar, podemos imaginar um mundo melhor do que este. Sem doenças, sem mortes. Não é, portanto o melhor dos mundos imagináveis, mas é o melhor dos mundos que existiram até hoje. Em nenhuma época histórica, houve um mundo tão bom quanto este em que vivemos. Vivemos até 80 anos, quando antes a expectativa de vida era de 40 anos. Hoje, temos os analgésicos, que nos poupam da dor, uma das tragédias da humanidade. Acredito que os seres humanos serão capazes de não destruir tudo o que foi criado.

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