O que faz um correspondente internacional quando é designado a viver um tempo fora do país? Faz uma lista de entrevistados impossíveis. Foi assim quando, em 1990, me convidaram a trabalhar pela VEJA em Paris. O rol: Brigitte Bardot, Yves Montand, François Mitterrand – e Jean-Luc Godard (François Truffaut já tinha morrido). Com medo de receber um rotundo “não”, a inércia a alimentar a impossibilidade, nunca, nem de perto, passei perto desses quatro personagens (salvo a tarde em que esbarrei no ator Jean-Paul Belmondo, perto do Café de Flore, ele levando na coleira um de seus melhores amigos, um yorkshire).
Mas Godard, Godard não me saía da cabeça, porque a França era ele. E então, em 25 de outubro de 1992 – sei da data precisa porque tenho o Google como amparo – li no The New York Times, ou melhor, no The International Herald Tribune, como no New York Herald Tribune de Jean Seberg em Acossado, um perfil do cineasta, que dali a alguns dias teria uma imensa retrospectiva organizada pelo MOMA nova-iorquino. A reportagem era assinada por Alan Riding, correspondente do jornal em Paris. Com o perdão pelo superlativo, ele escrevera as primeiras linhas mais geniais que eu já tinha lido para descrever um personagem. Assim: “Ouvir Jean-Luc Godard é muito parecido com assistir a seus filmes – cortes rápidos, non sequiturs, muita filosofia, intimidades ocasionais, estranhas obsessões e uma narrativa nada óbvia. As perguntas provocam reações, mas não necessariamente respostas. As palavras fluem livremente, mas seu significado é muitas vezes obscuro. E, como em muitos de seus filmes, o fim pode estar no começo e o meio pode estar no fim”.
Eis aí a chave, numa única frase, para resumir JLG: “O fim pode estar no começo e o meio pode estar no fim”. Depois de ler Alan Riding tomei coragem, chegara a hora de finalmente tentar ouvir o cineasta. Peguei um catálogo telefônico (de papel!) que incluía cidades da Suíça (ele morava em Rolle), pus os pés em cima da mesa e não demorei a encontrar a entrada: “Godard, J.L.”. Imaginei, por óbvio, que ali começaria o infindável périplo entre assessores, e assessores dos assessores, até nada conseguir. De modo um tanto displicente – fazia apenas minha obrigação como jornalista, afinal – disquei o número.
– Boa tarde, é do escritório de Jean-Luc Godard?
– Sim, sou eu.
Tremi. Como assim, “sou eu”? E quem, na face da Terra, seria capaz de fazer um par de perguntas a Godard sem ter estudado antes, sem rever seus filmes, sem ler alguma coisa do que ele escrevera no Cahiers du Cinema?
– O que o senhor deseja?
– Sou um jornalista brasileiro, da revista VEJA, a de maior circulação no país e…
– Não quero saber quem é o senhor, mas o que o senhor deseja…
Trêmulo, naquela altura os pés já tinham descido da mesa, prossegui com a minha tola peroração, ganhando tempo para sei lá o quê…
– Sou um jornalista brasileiro, da revista VEJA, a de maior circulação no país…
– Mas eu já disse, não quero saber quem é o senhor, mas o que deseja…
Esse suposto diálogo aconteceu uma vez mais até que respondi à insistente pergunta dentro daqueles dois intermináveis minutos.
– Quero uma entrevista com o senhor.
– Não dou.
E Jean-Luc Godard desligou o telefone na minha cara. Foi assim. Olhando hoje, de maneira retrospectiva, me arrependo de não ter escrito, naquela época, o relato do que rabisco agora – do nada, daquele nada, Godard faria um filme, misturando meio, começo e fim. Eu fiquei apenas com uma história para contar, o que já é alguma coisa. E ao menos, da leitura do que escrevera Alan Riding, fui ao dicionário e aprendi o significado da expressão non sequitur, que tinha visto nas aventuras de Asterix na Gália, mas deixei passar. Non sequitur é a “assertiva sem nenhuma referência lógica ao que foi dito anteriormente” ou a “inferência ou conclusão que não é consequência lógica das premissas”. O avesso do que fez Godard ao me despachar no telefone, porque eu simplesmente não soube dizer, na lata, o que queria dele.