Ao longo da história, foi com os ouvidos bem abertos que as civilizações evoluíram na compreensão e na produção da linguagem, escutando seus pares desde tempos remotíssimos. A tradição de contar histórias avançou junto com a humanidade e a impulsionou, encontrando em figuras que habitavam a Grécia Antiga, como o poeta Homero (928-898 a.C.), dos épicos Ilíada e Odisseia, um desenvolto propagador da prática em vias públicas. Eis que o mundo girou, séculos de oralidade se desenrolaram, e as pessoas estão hoje às voltas com altas tecnologias que ajudam a cultivar um dos mais velhos hábitos de que se tem notícia. A era atual é a dos audiobooks, ou audiolivros, disponíveis em plataformas on-line, pagas ou gratuitas. E assim começa a se formar uma geração, composta de leitores e não leitores, que põe os fones no ouvido e passa a escutar todo tipo de literatura nos mais inesperados momentos.
Os números do mercado, sacolejado pelas profundas mudanças trazidas pelo esticado período pandêmico, em que as pessoas foram em busca de mais estímulos, revelam quanto o contingente de leitores-ouvintes se expande. Nos Estados Unidos, ele segue há uma década embalado por um crescimento de dois dígitos a cada ano, enquanto no Brasil, que partiu de patamar baixo há bem pouco tempo, as vendas quase duplicaram em 2020, segundo a Câmara Brasileira do Livro. As ferramentas para ouvi-los, naturalmente, vão se sofisticando — a da Amazon, com 100 000 exemplares a um clique, acaba de chegar às estantes virtuais brasileiras. Com a presença dos audiobooks entre nós, torna-se incontornável a pergunta que tantos usuários e especialistas se fazem agora: o ato ancestral de ouvir uma boa trama ou um primoroso clássico é tão potente quanto o de se debruçar página a página sobre eles?
A resposta não é nada trivial, e mobiliza a turma da neurociência, que se dedica a investigar a mente em ação nas duas situações. Em Biohack Your Brain (algo como hackeando o seu cérebro), a americana Kristen Willeumier, autora de vasto estudo, defende a ideia de que ambas as atividades são poderosos gatilhos para o exercício intelectual. “A informação vinda tanto da leitura como da audição é processada nas mesmas áreas corticais”, observa. Verdade que há uma interessante nuance aí. Quando o livro se desenvolve sobre uma narrativa mais linear e de desfecho previsível, a diferença entre ler e ouvir é tão tênue que os resultados se equiparam. Foi o que mostrou uma clássica pesquisa conduzida pelas universidades americanas de Bloomsburg e Califórnia. “No grupo dos ouvintes e no dos leitores, a compreensão no caso de enredos de menor complexidade é equivalente”, enfatizaram os cientistas.
E o que dizer de uma escrita repleta de metáforas que ajudam a narrar imprevisíveis roteiros com idas e vindas? Um sólido conjunto de estudos mostra que, nesses casos, a absorção via leitura tende a ser mais abrangente — a começar pelo nível de atenção que proporciona. “Um áudio requer uma capacidade de concentração mais elevada, o que nem todos têm”, pondera a neurologista Adélia Souza, lembrando um comportamento comum entre os ouvintes literários contumazes. “Muitos estão expostos a variados estímulos ao mesmo tempo, o que abre espaço à dispersão.”
A discussão se volta para o próprio aprendizado, processo em que todos os sentidos humanos conspiram a favor do saber, porém em diferentes graus. Um levantamento da Universidade do Norte do Colorado indica que estudantes dedicados a um mesmo conteúdo de alto nível armazenam na memória 81% do assunto abordado quando leem textos impressos, ao passo que os que apenas ouvem retêm 59% das informações. “Gosto dos audiolivros, mas sinto que perco um pouco do fio da meada por não estar diante de linhas e parágrafos”, avalia o diretor de conteúdo Luiz Gabriel Rodrigues, 26 anos, do time dos adoradores das belas capas.
Uma ala de pedagogos chama ainda atenção para o efeito que a palavra falada exerce na constituição do intelecto. No princípio da vida, é por meio da audição que os primeiros termos vão povoando a mente — uma habilidade que se amplifica com a passagem do tempo. “Escutar termos difíceis, ouvir sua pronúncia — tudo isso contribui para aumentar o repertório linguístico”, enfatiza a educadora Débora Barreiros. Em sociedades movidas pela pressa, achar brechas para qualquer espécie de leitura é por si só saudável e muito bem-vindo. “Eu sentia saudade dos clássicos, com os quais voltei a ter contato por meio dos audiolivros. Já baixei mais de quarenta”, contabiliza o músico Fernando Moreira, 28 anos. Ele integra uma tribo crescente: um a cada três brasileiros afirma ter extraído prazer da experiência de escutar obras gravadas, segundo o centro de pesquisas Opinion Box.
Como em uma atividade física, quanto mais um indivíduo se dedica aos livros, melhor leitor se torna. A explicação reside na teia de conexões entre os neurônios que vai se estabelecendo no ato da leitura — uma trilha que não se desfaz e pode, portanto, ser percorrida novamente, funcionando como um atalho a cada volume lido. Um adulto retém, em média, 180 palavras por minuto, capacidade que sobe para 250, ou mais, no rol dos leitores vorazes. Esse treino é incomparável com qualquer outro, mas ouvir livros também traz uma vantagem, para a qual o grande crítico literário Harold Bloom (1930-2019), que dizia devorar 400 páginas em uma hora, atentava. Bloom acreditava que apenas a leitura profunda, frente a frente com o texto, era capaz de englobar 100% das camadas da cognição. Apresentado aos audiobooks, porém, ele lançava a reflexão: será que sempre precisamos envolver todo o processo intelectual quando lemos ou basta estarmos imersos no enredo e deixar o sentimento fluir? O decisivo mesmo, já pregava o sábio Bloom, é viver sempre cercado de boas histórias.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865