Comer com os olhos pode não ser tão ruim quanto se pensava. É que apreciar a aparência do prato, junto ao seu aroma, é o primeiro passo para desfrutar de uma boa refeição. E essa imersão, que se completa a cada mordida curtindo o sabor e com a sensação de plenitude logo depois, faz toda a diferença para estabelecer uma relação mais harmoniosa e saudável com a alimentação. Após décadas de dietas e fórmulas prontas, exaltando um ou outro ingrediente, a ciência tem valorizado cada vez mais o conjunto da obra — e os hábitos, o estado emocional e o ambiente contam muitos pontos nesse sentido. Não é por menos que as distrações, sobretudo as tecnológicas, se tornaram uma das maiores rivais de uma rotina balanceada. Ao drenar o foco na comida, elas atrapalham não só o prazer do paladar, como os sinais de fome e saciedade, levando a exageros e escolhas equivocadas. É diante desse cenário de desconexão com o prato que se projeta a abordagem da nutrição comportamental, um movimento brasileiro que anda de mãos dadas com conceitos em alta como o mindful eating, o “comer com atenção plena”.
Um olhar para o passado ajuda a entender a relevância do tema. Se o ser humano foi forjado na luta por qualquer fonte de caloria — sem garantia de sucesso —, agora vive uma bonança de opções, com direito a delivery. Em frente de refeições prontas, em casa ou no self-service, nunca ficamos tão reféns do celular e de outras telas. O resultado é que comer entrou em ritmo de piloto automático, dividindo tempo e espaço com outras tarefas e lazeres (desde a infância). Nos desgarramos das sensações que uma fruta ou um copo de leite proporcionam e, para não ficar no prejuízo, corremos atrás de regimes se a situação degringolar. É contra isso que se levanta a nutrição comportamental: ela prescreve mais foco, empatia e autocuidado à mesa. Esses princípios são compartilhados pelo livro recém-lançado Mindful Eating: Comer com Atenção Plena (Editora Amarilys), das nutricionistas Cynthia Antonaccio e Manoela Figueiredo, embaixadoras dessa escola. “Não queremos uma batalha com o alimento, mas uma dança. Um olhar de apreciação para a comida, e não de julgamento”, resume Cynthia. “Em vez de regras, buscamos planejamento. Afinal, a gente só faz boas escolhas quando está realmente atenta.”
Essa visão bebe de uma noção difundida pelo mindfulness, um rol de práticas que procuram nos conectar com o momento presente. No caso da alimentação, não se trata de uma meditação em si, mas de se ater a tudo que envolve o comer e de refletir diante de emoções que inspirem ataques de compulsão, por exemplo. “A nutrição está saindo da questão física e entrando na saúde mental”, afirma o médico Marcelo Demarzo, que coordena o Centro Brasileiro de Mindfulness e Promoção da Saúde — Mente Aberta, ligado à Unifesp. “É um momento individual de contemplação, e também de perceber o lado positivo da comida, seu valor para a sociedade e seu impacto para o planeta.”
Assim, o estresse, as angústias e os padrões de comportamento que repercutem nas refeições começam a ser acolhidos e ajustados para evitar um ciclo prejudicial à saúde como um todo. Nessa jornada, é preciso aprender a ouvir e respeitar o próprio corpo, como propõe o psiquiatra americano Judson Brewer no livro Desconstruindo o Hábito da Fome (Editora Sextante), um manual sobre como lidar com desejos e impulsos envolvidos em um almoço ou jantar. O neurocientista argumenta que, na correria vigente, o desafio reside em distinguir a fome real de um ímpeto emocional que resultará em mais calorias ingeridas e poderá abrir uma avenida a problemas de saúde. “Prestar atenção nas sensações físicas ajuda a ter consciência e a perceber com mais clareza as sensações corporais”, afirma no livro.
A ideia, portanto, é mudar o mindset à mesa — antes mesmo de se sentar para comer. E tomar cuidado com o apetite pelas telas e os conteúdos rodando ali, que consomem o foco e acarretam mudanças de humor. “Com o celular à mão, a pessoa pode ficar irritada e comer mais ou mais rápido”, exemplifica Cynthia. Para se alimentar melhor, o segredo não está na dieta da vez compartilhada pelas redes sociais. Está em saborear cada garfada com todos os sentidos.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906