Semanas atrás, estreei como modelo no maior evento de moda do Brasil, a São Paulo Fashion Week. Entrar na passarela foi uma sensação única. Achei que ficaria nervosa, mas no final me vi em êxtase. Realizar esse sonho teve um significado especial. Aos 8 anos, sofri um acidente que deixou marcas profundas no meu rosto. Passei a juventude imaginando que o episódio difícil teria algum propósito positivo em minha vida. Mas jamais me enxerguei ocupando esse espaço na SPFW. Em 2005 meus pais eram donos de uma loja de skate em Curitiba e decidiram transferir o negócio e a família para Florianópolis. Minha avó paterna já morava na capital de Santa Catarina e ficou responsável por levar eu e meus irmãos (Eduarda, de 10 anos, e João, de 2) de carro até nossa nova casa. No meio da estrada, ela sofreu um mal súbito e perdeu o controle do veículo. Em um reflexo, minha irmã puxou o freio de mão para que nós não fôssemos parar debaixo de um caminhão, mas isso fez o carro rodopiar e bater no acostamento. Com o impacto, a mola do banco da frente cortou todo o meu rosto e o cinto de segurança esmagou meu abdômen, provocando hemorragia interna e o rompimento do meu intestino. Eduarda perdeu os quatro dentes da frente; já a minha avó fraturou cinco vértebras. Na hora da batida, ainda consegui segurar meu irmão, que não sofreu nenhuma fratura. Para nossa sorte, um médico passava pela rodovia na hora do acidente e nos socorreu no local até a chegada das ambulâncias e, depois, de um helicóptero. Se não fosse por aquele doutor, eu provavelmente teria morrido.
Até chegar ao hospital, entre um desmaio e outro, consegui passar o contato da minha família para que nos encontrassem. Fiquei quinze dias em coma induzido na UTI por causa de um coágulo no cérebro e sem poder receber visita — pois, mesmo naquele sono profundo, sentia a presença dos meus familiares e ficava nervosa. Apesar do meu quadro crítico, tive uma recuperação milagrosa. Recebi a tão sonhada alta, mas fui para casa usando uma bolsa de colostomia, da qual necessitei por alguns meses, até que meu intestino se recuperasse — além de exibir vários pontos no rosto e na barriga. Minha irmã e minha avó também conseguiram se recuperar, após muita fisioterapia.
Passado o caos, conseguimos terminar a mudança de estado e fui matriculada na escola, encarando o processo de adaptação a uma nova vida em vários sentidos, principalmente com o desafio de fazer novos amigos. Fui alvo de bullying. Não tinha noção do quanto minha aparência era impactante para as outras pessoas, já que eu nunca deixei o acidente me abalar a ponto de me privar de qualquer coisa. Eu ia estudar empolgada, até que comecei a relatar algumas situações para minha mãe, que percebeu as atitudes abusivas de meus colegas. Protetora, ela conversou com a direção da escola e os pedagogos resolveram essa questão com muito diálogo entre todos. É até engraçado pensar que eu realmente não tinha essa percepção negativa sobre as minhas cicatrizes. Elas não me definem.
Na adolescência, aquela fase em que começamos a ir a baladas e flertar, confesso que tive momentos de insegurança, mas preservei a essência desinibida que sempre tive. Apesar do detalhe na minha aparência física, fui incentivada a trabalhar como modelo por uma conhecida da minha família que é dona de uma agência. Essa carreira não passava pela minha cabeça, já que eu estava cursando as faculdades de secretariado e relações internacionais simultaneamente. Sonhava em virar uma diplomata, mas peguei gosto por ser modelo. Hoje, é reconfortante receber mensagens de desconhecidos pelas redes sociais e descobrir que minha jornada serve de inspiração para outras pessoas.
Giulia Dias em depoimento dado a Kelly Miyashiro
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818