O poeta Charles Baudelaire (1821-1867), precursor francês do simbolismo e um grande flâneur, certa vez escreveu que, no abrir de um antigo frasco de perfume, o cheiro do passado poderia trazer uma alma de volta à vida. No caso do Palácio de Versalhes, a 30 quilômetros de Paris, a variedade de aromas suspensa no ar transporta o visitante para uma era em que o poder acumulado nas mãos de um rei encontrou seu nível mais absoluto. Foi ali que Luís XIV, sempre lembrado pela frase que resumia seu modo de ver o mundo — L’État c’est moi (Eu sou o Estado) —, mandou erguer um jardim como símbolo no século XVII de sua força para, num estalar de dedos, exibir às cortes europeias a mais exótica coleção de espécies de seu tempo.
A roda da história girou, e o Jardin du Parfumeur, onde surgiram os primeiros perfumistas dedicados à produção de luxuosas fragrâncias, desapareceu. Mas não sua memória, agora resgatada depois de um extraordinário trabalho de recomposição que pôs novamente de pé as mais de 300 espécies de 1 000 variedades de plantas do conjunto escolhido a dedo pelo monarca conhecido como Rei Sol. O projeto cavucou relatos bem guardados pelo Centro de Pesquisas do palácio, entre eles os escritos do célebre André Le Nôtre, o jardineiro-chefe que ditou o paisagismo em voga à época, e um guia do próprio rei sobre como melhor fazer uso dos terrenos naturais de sua opulenta propriedade. A expertise da atual equipe do castelo, hoje convertido em museu, também ajudou a recriar o cenário imaginado por Luís XIV, situado no Grand Trianon, onde ele aproveitava para ficar a alguns metros de distância das costuras políticas que se desenrolavam no prédio principal.
O passeio compreende o Jardim das Curiosidades, entremeado por laranjeiras e limoeiros que se enchem de frutos, e uma estufa subterrânea, na qual flores perfumadas podem ser cultivadas o ano todo. Um caminho ladeado por cerejeiras japonesas e arbustos aromáticos — como o jasmim rústico, o lilás e a silindra — desemboca no Jardim Secreto, farto em orquídeas, rosas-chá e lírios gigantes do Himalaia. Como as primeiras mudas foram plantadas em 2022, na inauguração podia-se apreciar toda a exuberância da floração. “Quem passear pelo terreno sentirá o aroma da história”, disse a VEJA Catherine Pégard, presidente de um dos mais visitados cartões-postais de quem vai à França.
O entusiasmo do todo-poderoso rei pelas fragrâncias acabou por produzir uma revolução olfativa na França e fincar as bases de uma indústria que foi tomando corpo na Europa. Os pioneiros profissionais da perfumaria apareceram antes de Luís XIV, após a Peste Negra, que dizimou populações inteiras no século XIV. O trauma então causado à humanidade fez disseminar a crença de que a água pudesse espalhar doenças, enquanto as essências florais combateriam infecções. E dá-lhe banhos à base de perfume, necessidade básica que a corte de Versalhes tornou luxo. “Perfumar-se virou ali símbolo de status”, afirma a historiadora Élisabeth de Feydeau, especializada em aromas. Naturalmente, os mais virtuosos no ofício passaram a ganhar influência no palácio, que aumentava conforme se punham a criar sachês e leques embebidos em novas essências. Era tanto o apreço de Luís XIV pela flor de laranjeira que seus cortesãos começaram até a se banhar com ela para conquistar o coração real e obter favores.
Centro do poder de 1682, quando o Rei Sol se bandeou para lá para fugir da inflamável Paris, até Luís XVI ser forçado a deixar a vida boa em 1789, o ano da Revolução Francesa, Versalhes e seus bem ordenados jardins davam uma demonstração de como a natureza poderia ser aprimorada pela engenhosidade humana, ecoando o ideal renascentista. A rara coleção de plantas também era uma prova do supremo poder real — ninguém mais teria condições de financiar expedições das Américas ao sul da Ásia para reunir tantas preciosidades. “Os jardins eram, sem dúvida, o coração da grandiosidade de Versalhes”, explica a historiadora Chandra Mukerji, da Universidade da Califórnia em San Diego.
Quando Luís XV assumiu o trono, após 72 anos de reinado de seu bisavô (cujos filhos e netos morreram antes), seguiu com a tradição da alta jardinagem no palácio. Botânico fervoroso, ele enviou “caçadores de plantas” aos confins do planeta, somando 4 000 espécies, número incomparável ao de qualquer outro monarca. Os perfumistas tiveram trabalho em sua temporada no trono, já que tinham de criar fragrâncias para sua influente amante, Madame de Pompadour. Naquele tempo, quem ousasse replantar as premiadas flores de Versalhes precisa obter permissão oficial. Do contrário, enfrentaria punições severas.
O declínio dos nobilíssimos jardins veio com Luís XVI, menos afeito à natureza, que delegou sua administração à mulher, Maria Antonieta. Acompanhando a moda, ela deu preferência a uma paisagem mais selvagem, tal qual faziam os britânicos. Isso não quer dizer que a rainha não prezasse as fragrâncias. Contava, inclusive, com um perfumista pessoal, que para ela inventou a essência Eau d’Ange, até hoje encontrada em prateleiras francesas. Com a revolução, o casal, que ostentava luxo enquanto o povo passava sufoco, acabou na guilhotina. Depois, o autoproclamado imperador Napoleão I chegou a morar uns tempos por lá, mas o Jardin du Parfumeur já havia se desfigurado. Agora refeito, ele ajuda a contar um efervescente e decisivo capítulo. “O jardim, porém, não olha apenas para trás”, lembra o jardineiro Giovanni Delù, envolvido em sua recuperação. De lá, logo sairá matéria-prima para novas fragrâncias que abastecerão elegantes frascos e permitirão aos plebeus de hoje trilhar uma agradável viagem olfativa pela história.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846