Na era da inteligência artificial, das redes sociais e dos mundos virtuais, isso tudo que vivemos agora, o singelo ato de ler deixou de ser apenas um atalho para o conhecimento, como definiu Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) — a leitura virou um ato de resistência contra a enormidade de lixo visual despejado diariamente por meio de milhares de telas e plataformas. Por incrível que pareça, esse movimento transformador vem sendo impulsionado justamente pelos nativos digitais. Os jovens da chamada geração Z, de até 25 anos, nascidos com os olhos colados aos smartphones e tablets, é que lideram o interesse renovado pelos livros físicos e até pelas bibliotecas. É fascinante.
É surpresa confirmada pelas pesquisas. A edição mais recente do levantamento Retratos da Leitura, realizado pelo Ibope a pedido do Instituto Pró-Livro, mostra que a maior quantidade de leitores está na base da pirâmide etária brasileira, entre 11 e 13 anos (veja no quadro). Dos 34 milhões de frequentadores de bibliotecas no país, cerca de 16% da população, os mais assíduos são os jovens entre 14 e 24 anos. Eles as frequentam em busca de volumes para folhear, sem dúvida, mas também como espaço de encontro, de amizades, de troca de ideias. Para gerações atavicamente on-line, cujas relações são forjadas por meio das telas touch, esses lugares se tornaram um refúgio para a convivência social — em meio a prateleiras coalhadas de livros.
Em São Paulo, a Biblioteca de São Paulo, no bairro do Carandiru, e a Biblioteca Parque Villa-Lobos, no Alto de Pinheiros, receberam quase 600 000 visitantes no ano passado. Mais da metade desse público corresponde à geração Z, que vê esses lugares mais como centros comunitários e menos como um templo silencioso do saber. “Eles vêm para jogar pingue-pongue, futebol, estudar, interagir entre si ou apenas passar o tempo”, diz Pierre Ruprecht, diretor-executivo da SP Leituras, organização social responsável pela administração dos dois espaços e de outros ligados à leitura na capital paulista. E, é natural, acabam sendo atraídos também para a leitura.
Dada a impossibilidade de sairmos da internet, de vivermos desplugados (leia a entrevista com o sociólogo Manuel Castells), os dois mundos deram as mãos: o eletrônico e o de papel. A boa surpresa: repositório de memes, vídeos curtos e outras bobagens, o onipresente TikTok entrou na dança. Brotam com interessante frequência os “booktokers”, os divertidos influenciadores que usam a plataforma para dar dicas de leitura e gravar suas resenhas de títulos recém-lançados. E bingo: as vendas cresceram, especialmente a de sugestões de romances e fantasia. “O BookTok é um grande clube do livro, onde as pessoas compartilham o que leram e dividem interesses”, diz Tiago Valente, cujo perfil na plataforma chinesa tem belos 500 000 seguidores.
Os livreiros já mediram o reflexo direto das ofertas que nascem da turma do celular — tal como, no passado, vendiam-se muito os lançamentos que Jô Soares levava para seus programas noturnos, ou como faz Oprah Winfrey na TV americana. Estima-se crescimento de 30% a 40% da saída de livros indicados pelos blogueiros mais celebrados. É fenômeno que não pode ser desdenhado. “O interesse das novas gerações pelos livros é evidente, e muito dessa atração é alimentada pelos meios eletrônicos”, diz Dante Cid, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
Os clubes de livros mais tradicionais também sentem a tração. Na TAG, mais de 60% da base de assinantes é de jovens. Não por acaso, a empresa criou um aplicativo que funciona aos moldes de uma rede social, incentivando trocas e discussões em torno dos livros enviados pelos correios. A ágora digital ajuda a entender o perfil do público consumidor. “Num modelo de clube, não precisamos vender o livro, precisamos enviar livros que as pessoas gostem. Isso nos obriga a conhecer muito bem o gosto do nosso leitor”, diz Gustavo Lambert, diretor da TAG.
A guerra educativa está longe de ser vencida, mas as ferramentas atreladas aos celulares transformam uma experiência individual em prática coletiva de leitura. Não é pouca coisa.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886